DAMATTA, Roberto (Org.). Receitas para Enlouquecer: Avaliações e Julgamentos do Trânsito. In: Fé em Deus e Pé na Tábua: Ou por que o trânsito enlouquece no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 69-72.
O autor discute no capítulo 3, o modo pelo qual os usuários das vias públicas imaginam, definem ou representam o espaço público no qual atuam como pedestres ou motoristas motorizados. Numa perspectiva das representações sociais, DaMatta (2011) destaca no texto a “visão rotineira” de todos os que, nas ruas, estradas e calçadas “estão engajados numa luta de todos contra todos” onde a “única regra é o salve-se quem puder”. Destaca ainda que “a expectativa é de luta, competição e brutalidade, resultando disso a visão de trânsito caótico.
A posição
das pessoas em relação ao espaço público, dentro do sistema, desponta como
característica importante na tradução dessa imagem caótica manifestada pela
força bruta, no poder da velocidade, como bem frisa o autor. “Na qualidade de
pedestres e de ciclistas, os usuários do espaço público sentem-se agredidos,
inferiorizados e subordinados à lógica selvagem e agressiva do transito”.
A
representação das ruas é esboçada por DaMatta em termos de “sensibilidade
despertada e aguçada para o estilo irracional e agressivo de dirigir”, sendo
que tal postura denota claramente uma mentalidade cujos comportamentos reforçam
a ideia de verdadeiros “donos ou patrões do trânsito”, tendo-se como principal
atores desse sistema os automóveis, os ônibus e caminhões.
Outra representação
simbólica importante é quando DaMatta associa a imagem do carro possante a uma
espécie de armadura, na qual o motorista de sente protegido e ao mesmo tempo
blindado se sentido revestido de poder e apto a promover uma inusitada sensação
de força, ficando notória a “consciência de padrões da irracionalidade
competitivo-agressiva do trânsito”.
O contrário
também é verdadeiro, sendo experimentada uma sensação de completa
vulnerabilidade sentida tanto por pedestres quanto por ciclistas, o que reforça
o auto, ao referir-se ao cenário dramaticamente marcado por toda sorte de
riscos, trapaças e ilegalidades.
De acordo
com as narrativas dos próprios pedestres a respeito dessas posturas perigosas
as imagens mais comuns são aquelas que descrevem tais motoristas como “donos da
rua”, um estigma de prepotência e de desenfreado desrespeito ao próximo; em
seguida, a de inimigo e assassino, termo que entrou para o mundo jurídico na
discussão das infrações de trânsito como “aquele que assume o risco deliberado
de matar”.
Essas mesmas
narrativas destacam as inúmeras experiências costumeiras de desrespeito aos
semáforos, faixas destinadas à proteção do pedestre e aos sinais expressos de
cruzamentos das vias, locais privilegiados pelo alto índice de infrações, de
desrespeito ao pedestre.
O texto de
DaMatta avança demonstrando a trivialidade e irracionalidade do tempo de
duração dos sinais que não ficam abertos ao pedestre o tempo suficiente para
que este proceda a travessia com segurança, resultando numa dramática experiência,
reforçando a ideia de que, de fato, a rua é espaço exclusivo dos veículos
motorizados e não também de pedestres.
Diante
desses apontamentos, fruto de uma pesquisa reveladora que expõe a realidade do
trânsito no Brasil talvez seja oportuno destacar que tais inquietações sobre a
situação caótica movida por comportamentos irrefletidos calcados na tendência
ao desrespeito às leis de trânsito, fez aflorar um campo específico de estudos
desses fenômenos: a psicologia do trânsito que tem como objeto de estudo o
comportamento em todas as suas dimensões.
É claro que, em termos de comportamentos irracionais tendo como ponto de partida suas motivações inconscientes já perpassam o campo de interesse psicanalítico, principalmente no momento em que buscou-se estudar as relações entre o tipo de escolhas por carros (marcas, cores e modelos) ligados à libido, a força (trieb=termo alemão para pulsão) ou instinto sexual.
É claro que, em termos de comportamentos irracionais tendo como ponto de partida suas motivações inconscientes já perpassam o campo de interesse psicanalítico, principalmente no momento em que buscou-se estudar as relações entre o tipo de escolhas por carros (marcas, cores e modelos) ligados à libido, a força (trieb=termo alemão para pulsão) ou instinto sexual.
Esse
concepção inclusive, dominou a mentalidade dos anos 80, principalmente nos
E.U.A quando era comum a associação entre carro potente e veloz, como chamariz
de “garotas”, atribuindo-se forte apelo sexual ao automóvel.
Anos
rebeldes ensejaram também o comportamento “fora da lei”, com a contribuição
decisiva das produções hollywoodianas como “Duro na Queda” (The Fall Guy) com
Lee Majors; Os Gatões (The Dukes of Hazzard) e mais recentemente, Velozes e
Furiosos. Produções que marcaram e marcam gerações de aficionados por carros
possantes.
Não se sabe
exatamente até que ponto essa força midiática tenha contribuído com a estruturação de esteriótipos, ou no
condicionamento dessas mentes transgressoras, sabe-se que, em determinado nível
há uma introgeção desses modelos desviantes. Seja como for, antes de se
constituir transgressão das normas de trânsito pura e simplesmente,
constitui-se uma violação de espaços de eu com outro.
Monique
Augras¹ para falar do espaço da convivialidade, discorreu sobre a temática afirmando
que no direito romano, o dimensionamento do espaço possui origem religiosa. “A
agrimensão, essa arte fundamental de limitação que, no sentido jurídico e
religioso, é a única fonte da propriedade estável, está sempre ligada à
organização consagrada do espaço”. Do espaço sagrado, chega-se a ager publicus que pertence ao estado, e
em seguida ao ager divinus et adsignatus,
a propriedade privada. Os limites de ambos não devem ser transpostos. Ou seja,
as leis andam como feixes paralelos, harmonizando as relações entre o eu e o
outro. Quando essa regra básica é quebrada, houve transgressão do espaço da
convivialidade e nesse ponto, o conflito se instaura.
Prossegue
Algras afirmando que para o indivíduo este enfoque da proxêmica, que visa
situá-lo em sua territoritorialidade se reveste de importância quando da
análise da transgressão do espaço.
O que
DaMatta buscou explicitar neste capítulo foi justamente, em outras palavras, a
transgressão do espaço da convivialidade, demonstrada no desrespeito das regras
de convivência no trânsito.
Acredita-se
que, para concluir, essa questão é antes de tudo, uma questão de consciência,
sendo possível salvar essa nova geração que ainda estão nos bancos escolares,
do ensino básico, fundamental e médio a exercitarem a cidadania de forma plena,
respeitando os espaços do outro, seja na função de pedestre ou de motorista.
Palavras-chave: Trânsito, Via Pública, Brutalidade.