quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

AVALIAÇÕES E JULGAMENTOS DO TRÂNSITO


DAMATTA, Roberto (Org.). Receitas para Enlouquecer: Avaliações e Julgamentos do Trânsito. In: Fé em Deus e Pé na Tábua: Ou por que o trânsito enlouquece no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 69-72.

O autor discute no capítulo 3, o modo pelo qual os usuários das vias públicas imaginam, definem ou representam o espaço público no qual atuam como pedestres ou motoristas motorizados. Numa perspectiva das representações sociais, DaMatta (2011) destaca no texto a “visão rotineira” de todos os que, nas ruas, estradas e calçadas “estão engajados numa luta de todos contra todos” onde a “única regra é o salve-se quem puder”. Destaca ainda que “a expectativa é de luta, competição e brutalidade, resultando disso a visão de trânsito caótico.
A posição das pessoas em relação ao espaço público, dentro do sistema, desponta como característica importante na tradução dessa imagem caótica manifestada pela força bruta, no poder da velocidade, como bem frisa o autor. “Na qualidade de pedestres e de ciclistas, os usuários do espaço público sentem-se agredidos, inferiorizados e subordinados à lógica selvagem e agressiva do transito”.
A representação das ruas é esboçada por DaMatta em termos de “sensibilidade despertada e aguçada para o estilo irracional e agressivo de dirigir”, sendo que tal postura denota claramente uma mentalidade cujos comportamentos reforçam a ideia de verdadeiros “donos ou patrões do trânsito”, tendo-se como principal atores desse sistema os automóveis, os ônibus e caminhões.
Outra representação simbólica importante é quando DaMatta associa a imagem do carro possante a uma espécie de armadura, na qual o motorista de sente protegido e ao mesmo tempo blindado se sentido revestido de poder e apto a promover uma inusitada sensação de força, ficando notória a “consciência de padrões da irracionalidade competitivo-agressiva do trânsito”.
O contrário também é verdadeiro, sendo experimentada uma sensação de completa vulnerabilidade sentida tanto por pedestres quanto por ciclistas, o que reforça o auto, ao referir-se ao cenário dramaticamente marcado por toda sorte de riscos, trapaças e ilegalidades.
De acordo com as narrativas dos próprios pedestres a respeito dessas posturas perigosas as imagens mais comuns são aquelas que descrevem tais motoristas como “donos da rua”, um estigma de prepotência e de desenfreado desrespeito ao próximo; em seguida, a de inimigo e assassino, termo que entrou para o mundo jurídico na discussão das infrações de trânsito como “aquele que assume o risco deliberado de matar”.
Essas mesmas narrativas destacam as inúmeras experiências costumeiras de desrespeito aos semáforos, faixas destinadas à proteção do pedestre e aos sinais expressos de cruzamentos das vias, locais privilegiados pelo alto índice de infrações, de desrespeito ao pedestre.
O texto de DaMatta avança demonstrando a trivialidade e irracionalidade do tempo de duração dos sinais que não ficam abertos ao pedestre o tempo suficiente para que este proceda a travessia com segurança, resultando numa dramática experiência, reforçando a ideia de que, de fato, a rua é espaço exclusivo dos veículos motorizados e não também de pedestres.
Diante desses apontamentos, fruto de uma pesquisa reveladora que expõe a realidade do trânsito no Brasil talvez seja oportuno destacar que tais inquietações sobre a situação caótica movida por comportamentos irrefletidos calcados na tendência ao desrespeito às leis de trânsito, fez aflorar um campo específico de estudos desses fenômenos: a psicologia do trânsito que tem como objeto de estudo o comportamento em todas as suas dimensões. 
É claro que, em termos de comportamentos irracionais tendo como ponto de partida suas motivações inconscientes já perpassam o campo de interesse psicanalítico, principalmente no momento em que buscou-se estudar as relações entre o tipo de escolhas por carros (marcas, cores e modelos) ligados à libido, a força (trieb=termo alemão para pulsão) ou instinto sexual.
Esse concepção inclusive, dominou a mentalidade dos anos 80, principalmente nos E.U.A quando era comum a associação entre carro potente e veloz, como chamariz de “garotas”, atribuindo-se forte apelo sexual ao automóvel.
Anos rebeldes ensejaram também o comportamento “fora da lei”, com a contribuição decisiva das produções hollywoodianas como “Duro na Queda” (The Fall Guy) com Lee Majors; Os Gatões (The Dukes of Hazzard) e mais recentemente, Velozes e Furiosos. Produções que marcaram e marcam gerações de aficionados por carros possantes.
Não se sabe exatamente até que ponto essa força midiática tenha contribuído com  a estruturação de esteriótipos, ou no condicionamento dessas mentes transgressoras, sabe-se que, em determinado nível há uma introgeção desses modelos desviantes. Seja como for, antes de se constituir transgressão das normas de trânsito pura e simplesmente, constitui-se uma violação de espaços de eu com outro.
Monique Augras¹ para falar do espaço da convivialidade, discorreu sobre a temática afirmando que no direito romano, o dimensionamento do espaço possui origem religiosa. “A agrimensão, essa arte fundamental de limitação que, no sentido jurídico e religioso, é a única fonte da propriedade estável, está sempre ligada à organização consagrada do espaço”. Do espaço sagrado, chega-se a ager publicus que pertence ao estado, e em seguida ao ager divinus et adsignatus, a propriedade privada. Os limites de ambos não devem ser transpostos. Ou seja, as leis andam como feixes paralelos, harmonizando as relações entre o eu e o outro. Quando essa regra básica é quebrada, houve transgressão do espaço da convivialidade e nesse ponto, o conflito se instaura.
Prossegue Algras afirmando que para o indivíduo este enfoque da proxêmica, que visa situá-lo em sua territoritorialidade se reveste de importância quando da análise da transgressão do espaço.
O que DaMatta buscou explicitar neste capítulo foi justamente, em outras palavras, a transgressão do espaço da convivialidade, demonstrada no desrespeito das regras de convivência no trânsito.
Acredita-se que, para concluir, essa questão é antes de tudo, uma questão de consciência, sendo possível salvar essa nova geração que ainda estão nos bancos escolares, do ensino básico, fundamental e médio a exercitarem a cidadania de forma plena, respeitando os espaços do outro, seja na função de pedestre ou de motorista.


Palavras-chave: Trânsito, Via Pública, Brutalidade.

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