sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

SOLILÓQUIO

Essa é minha sala. O oitavo ano do primeiro grau no Colégio Anésio Leão, o Estadual da Palmeira (Campina Grande, Paraíba). Próximo à mezinha da professora é aonde me assento todos os dias. Ao meu lado Valéria (filha de um dono de mercearia no bairro do Monte Santo). Uma menina mais alta que eu, magra, esguia... Estudiosa. Ela costumava falar com uma força de expressão que exigia olhos nos olhos. Para mim era tarefa penosa já que fitando seu rosto vez por outra sua saliva expelida dos lábios vinha direto para os meus olhos.

Lá no fundão tá a galera bagunceira. Eu não os condeno. Já fui um deles por algum tempo, do tipo engraçadinho. Eles gostavam de mim. Admiravam meu talento de desenhista. Uns rabiscos que fazia e, vez por outra, deixava na redação do Diário da Borborema para ser publicado. Às vezes ficavam me perguntando o que havia de errado comigo. Por que eu não conseguia namorar uma daquelas moças como os carinhas do fundão as conquistavam tão facilmente. Mas vamos deixar a conversa para depois da aula, porque já vem a professora Neuzinha, “de Geografia Geral”.

Neuzinha aparentava ter seus 42 anos, magra, aproximadamente 1,70m de altura. Voz rouca, agravada pelo vício do cigarro (mas no perímetro do colégio, nunca a vi fumar. Ética). Severa. Fazia a exposição da aula com uma precisão própria dos mestres. Exigente. “Um aluno meu só passa de ano de mostrar competência.” Essa palavra ainda não tinha ouvido com essa facilidade sonora. Agora já familiarizado, concluo que Neuzinha era a própria competência. Morava só, num apartamento na Rua Barão do Abiauí, no Centro, onde também era sindica, com todos os rigores que o cargo impõe. Sua roupa, eu e a maioria da classe sempre achávamos extravagantes. Cores fortes, uso e abuso de babados, completando o manequim, uma maquiagem pesada numa tentativa inútil de esconder os traços bem acentuados de seu rosto.

 Neuzinha era um misto de dureza e ternura. Interrompia a aula muitas vezes para falar sobre sua vida sofrida no Sertão. Falava do pai, reticenciosa. Demonstrava orgulho da bravura do sertanejo do naipe de “meu pai” – dizia ele, com uma lágrima rebrilhando nos olhos.

Dentre os livros que a gente recebia do Governo do Estado (Excelentes livros), estava o de Geografia Geral. Sistemática, Neuzinha sabia dividi-lo bem certinho para o ano letivo.

Eu ficava em casa folheando apenas para ver as imagens ilustrativas. Quando menos me dava conta, já havia lido os primeiros capítulos. Os dias foram passando, os prazos se cumprindo, e a primeira e segunda prova revelou que a turma não estava em sintonia com Neuzinha. A maioria da classe estava com o rendimento abaixo das expectativas da professora. “Bruxa! Pavão! Magrela!” Murmuravam os colegas pelos corredores, sem nunca ousar se dirigir à professora.

Qualquer apelo dos colegas era em vão. Neuzinha ministrava uma aula com toda a maestria e experiência de seus anos de sala de aula e não aceitava flexibilizar o nível do ensino.
O resultado foi que a classe inteira foi para recuperação! E Neuzinha tratou de desenganar quem já estivesse perdido: não adianta chorar! Eu só passo quem estuda e mostra o que aprendeu na prova, e pronto!!!
O assunto da prova final era todo o Continente Africano, com seus aspectos políticos, sociais, culturais, e, claro, geográficos. Coincidentemente eu e a colega Valéria fomos para a final por conta de cinco décimos!  E tínhamos apenas três dias para estudar todo o assunto. Saímos do Colégio indignados. Uma atmosfera pesada atingiu em cheio o pessoal do fundão. Tinha gente que nem atingindo a nota máxima poderia passar de ano. A maior parte daquelas moças e rapazes tão festeiros parou com a algazarra e pesaram a encarar essa nova realidade.

No caminho de casa, pude notar que Valéria não conseguia conter as lágrimas e, em soluços dizia para mim (desta vez quase que cuspindo nos meus olhos) que iria mostrar a “essa professora” o quanto ela estava enganada e que não éramos cachorros para ser tratado de forma tão ríspida!

-João! Eu vou... Eu provar pra essa professora... Vou começar a estudar assim que chegar em casa!
-Eu também vou estudar seriamente, você vai ver! Respondi tentando comungar com aquele sentimento de “perda” que parecia irreparável para os brios da colega.

Separamos-nos como de costume na rua que dava para casa e ela se foi atordoada com seus pensamentos em brasa.

Sexta, sábado, domingo, segunda à tarde, já estávamos de volta à cena da prova. Minhas mãos suadas de nervoso. Dedos tamborilando sobre a carteira. A professora Neuzinha, com um lenço multicolorido amarrado naqueles cabelos cacheados passou por mim distribuindo a prova. A hora da verdade – pensei.

Os colegas foram saindo um por um e depositando suas provas sob o olhar severo da professora que observava atentamente a turma do fundão. Valéria também saiu. O aspecto de seu semblante era como um êxtase. Parecia envolvida numa alegria que não dava para esconder um sorriso de satisfação.

Quando eu terminei a prova, entreguei a professora e ao sai no corredor já não havia mais nenhum colega. Retornei para casa já sentindo a falta do corre-corre diário das aulas, da presença de cada um de minha turma.

Na quinta-feira à tarde, vim ao colégio para ver o resultado final. Percebi que meus colegas começavam a chegar e se juntar com os que já por lá estavam. Dirigi-me para o pátio da escola onde estavam afixadas as folhas com as respectivas turmas. Fui procurando nome por nome e quando me deparai com o meu, suspirei aliviado, escondendo um sorriso de felicidade. Minha vontade era de sair pulando de alegria! Passei de ano!

O tempo também passou, e hoje me vieram essas lembranças. Puxa vida, Valéria se casou, foi ser mãe, abandonou os estudos para nunca mais voltar, pelo menos este pareceu ser o intento do esposo.

A professora Neuzinha nunca mais a vi. Gostaria de poder me encontrar com ela para lhe dar um abraço forte e agradecer-lhe imensamente por tudo! A turma do fundão se fragmentou. Aquelas meninas lindas e atraentes que desejei namorar se envolveram com drogas e  prostituição. Um colega foi morto pela polícia, numa dessas madrugadas tensas de tiroteio no bairro do Jeremias. Outro que ficava admirando meus desenhos, enlouqueceu completamente devido ao uso de variadas drogas. Não chegaram a terminar os estudos do primeiro grau.


Quanto a mim, sou um milagre de Deus.


João Batista Nunes 
Psicólogo, Teólogo e Acadêmico de Direito.

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