Essa é minha sala. O oitavo
ano do primeiro grau no Colégio Anésio Leão, o Estadual da Palmeira (Campina
Grande, Paraíba). Próximo à mezinha da professora é aonde me assento todos os
dias. Ao meu lado Valéria (filha de um dono de mercearia no bairro do Monte
Santo). Uma menina mais alta que eu, magra, esguia... Estudiosa. Ela costumava
falar com uma força de expressão que exigia olhos nos olhos. Para mim era
tarefa penosa já que fitando seu rosto vez por outra sua saliva expelida dos
lábios vinha direto para os meus olhos.
Lá no fundão tá a
galera bagunceira. Eu não os condeno. Já fui um deles por algum tempo, do tipo
engraçadinho. Eles gostavam de mim. Admiravam meu talento de desenhista. Uns
rabiscos que fazia e, vez por outra, deixava na redação do Diário da Borborema
para ser publicado. Às vezes ficavam me perguntando o que havia de errado
comigo. Por que eu não conseguia namorar uma daquelas moças como os carinhas do
fundão as conquistavam tão facilmente. Mas vamos deixar a conversa para depois
da aula, porque já vem a professora Neuzinha, “de Geografia Geral”.
Neuzinha aparentava ter
seus 42 anos, magra, aproximadamente 1,70m de altura. Voz rouca, agravada pelo
vício do cigarro (mas no perímetro do colégio, nunca a vi fumar. Ética).
Severa. Fazia a exposição da aula com uma precisão própria dos mestres.
Exigente. “Um aluno meu só passa de ano de mostrar competência.” Essa palavra
ainda não tinha ouvido com essa facilidade sonora. Agora já familiarizado, concluo
que Neuzinha era a própria competência. Morava só, num apartamento na Rua Barão
do Abiauí, no Centro, onde também era sindica, com todos os rigores que o cargo
impõe. Sua roupa, eu e a maioria da classe sempre achávamos extravagantes.
Cores fortes, uso e abuso de babados, completando o manequim, uma maquiagem
pesada numa tentativa inútil de esconder os traços bem acentuados de seu rosto.
Neuzinha era um misto de dureza e ternura.
Interrompia a aula muitas vezes para falar sobre sua vida sofrida no Sertão.
Falava do pai, reticenciosa. Demonstrava orgulho da bravura do sertanejo do
naipe de “meu pai” – dizia ele, com uma lágrima rebrilhando nos olhos.
Dentre os livros que a
gente recebia do Governo do Estado (Excelentes livros), estava o de Geografia Geral.
Sistemática, Neuzinha sabia dividi-lo bem certinho para o ano letivo.
Eu ficava em casa
folheando apenas para ver as imagens ilustrativas. Quando menos me dava conta,
já havia lido os primeiros capítulos. Os dias foram passando, os prazos se
cumprindo, e a primeira e segunda prova revelou que a turma não estava em
sintonia com Neuzinha. A maioria da classe estava com o rendimento abaixo das
expectativas da professora. “Bruxa! Pavão! Magrela!” Murmuravam os colegas
pelos corredores, sem nunca ousar se dirigir à professora.
Qualquer apelo dos
colegas era em vão. Neuzinha ministrava uma aula com toda a maestria e
experiência de seus anos de sala de aula e não aceitava flexibilizar o nível do
ensino.
O resultado foi que a
classe inteira foi para recuperação! E Neuzinha tratou de desenganar quem já
estivesse perdido: não adianta chorar! Eu só passo quem estuda e mostra o que
aprendeu na prova, e pronto!!!
O assunto da prova
final era todo o Continente Africano, com seus aspectos políticos, sociais,
culturais, e, claro, geográficos. Coincidentemente eu e a colega Valéria fomos
para a final por conta de cinco décimos!
E tínhamos apenas três dias para estudar todo o assunto. Saímos do
Colégio indignados. Uma atmosfera pesada atingiu em cheio o pessoal do fundão.
Tinha gente que nem atingindo a nota máxima poderia passar de ano. A maior
parte daquelas moças e rapazes tão festeiros parou com a algazarra e pesaram a
encarar essa nova realidade.
No caminho de casa,
pude notar que Valéria não conseguia conter as lágrimas e, em soluços dizia
para mim (desta vez quase que cuspindo nos meus olhos) que iria mostrar a “essa
professora” o quanto ela estava enganada e que não éramos cachorros para ser
tratado de forma tão ríspida!
-João! Eu vou... Eu
provar pra essa professora... Vou começar a estudar assim que chegar em casa!
-Eu também vou estudar
seriamente, você vai ver! Respondi tentando comungar com aquele sentimento de
“perda” que parecia irreparável para os brios da colega.
Separamos-nos como de
costume na rua que dava para casa e ela se foi atordoada com seus pensamentos
em brasa.
Sexta, sábado, domingo,
segunda à tarde, já estávamos de volta à cena da prova. Minhas mãos suadas de
nervoso. Dedos tamborilando sobre a carteira. A professora Neuzinha, com um
lenço multicolorido amarrado naqueles cabelos cacheados passou por mim
distribuindo a prova. A hora da verdade – pensei.
Os colegas foram saindo
um por um e depositando suas provas sob o olhar severo da professora que
observava atentamente a turma do fundão. Valéria também saiu. O aspecto de seu
semblante era como um êxtase. Parecia envolvida numa alegria que não dava para
esconder um sorriso de satisfação.
Quando eu terminei a
prova, entreguei a professora e ao sai no corredor já não havia mais nenhum
colega. Retornei para casa já sentindo a falta do corre-corre diário das aulas,
da presença de cada um de minha turma.
Na quinta-feira à
tarde, vim ao colégio para ver o resultado final. Percebi que meus colegas
começavam a chegar e se juntar com os que já por lá estavam. Dirigi-me para o
pátio da escola onde estavam afixadas as folhas com as respectivas turmas. Fui
procurando nome por nome e quando me deparai com o meu, suspirei aliviado,
escondendo um sorriso de felicidade. Minha vontade era de sair pulando de
alegria! Passei de ano!
O tempo também passou, e hoje
me vieram essas lembranças. Puxa vida, Valéria se casou, foi ser mãe, abandonou
os estudos para nunca mais voltar, pelo menos este pareceu ser o intento do
esposo.
A professora Neuzinha
nunca mais a vi. Gostaria de poder me encontrar com ela para lhe dar um abraço forte e agradecer-lhe imensamente por tudo! A turma do fundão se fragmentou. Aquelas
meninas lindas e atraentes que desejei namorar se envolveram com drogas e prostituição. Um colega foi morto pela polícia, numa dessas madrugadas tensas
de tiroteio no bairro do Jeremias. Outro que ficava admirando meus desenhos, enlouqueceu
completamente devido ao uso de variadas drogas. Não chegaram a terminar os
estudos do primeiro grau.
Quanto a mim, sou um
milagre de Deus.
João Batista Nunes
Psicólogo, Teólogo e Acadêmico de Direito.
João Batista Nunes
Psicólogo, Teólogo e Acadêmico de Direito.
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