quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

CÍCERO


Marco Túlio Cícero nasceu em Arpino, cidade do Lácio, a 03 de janeiro de 647 da fundação de Roma e 106 antes de Cristo (a.C)[1]. O nome Cícero pertencia à família Túlio de Arpino, da gens plebeia Cláudia, que veio a ser altamente dignificada pelo incomparável orador. A História Romana, antes de Marco Túlio Cícero, só fazia menção de Cláudio Cícero, tribuno da plebe em 454 a.C.

A palavra parece derivar de cicer, “chicharo” ou “grão-de-bico”; provavelmente adotou-a como sobrenome de algum antepassado do orador que se entregara ao cultivo dessa leguminosa, à imitação dos Lêntulos, que tomaram seu nome da lentilha, e dos Fábios, derivado de faba, “fava”.

Tal hipótese é sustentada por Plínio na sua História Natural, XVIII, 3. Plutarco, porém, atribui o sobrenome a um dos indivíduos da família Túlia, que tinha no nariz uma verruga do tamanho de um grão-de-chícharo. Ainda conforme Plutarco, chamava-se Hélvia, sua mãe.

Cícero, em uma de suas obras filosóficas refere-se ao pai, que, retido no campo por motivo de saúde, entregava-se quase que inteiramente ao estudo das letras.

Marco Túlio Cícero pertencia a uma família da ordem equestre, e seu pai, ainda que afastado das lides políticas, mantinha relações com os homens mais notáveis da época.

O orador Licínio Crasso encarregou-se da educação de Marco e de seu irmão Quinto; sob a direção do mestre, Cícero ouviu, em Roma, as lições do poeta Árquias, grego, com o qual estudou os poetas, historiadores e filósofos da antiga Grécia. Cícero não descurou jamais do Latim, e, ainda jovem, começou a compor versos; abandonou, logo, a poesia, para se dedicar, inteiramente à retórica. Para esse abandono contribuiu não só o seu juízo crítico, mas também, em parte, os temas descritivos que escolhera, como Nilus; melhores não foram os seus resultados na poesia didascálica, ou na tradução dos Fenômenos de Arato; escreveu, também, um poema histórico, Marius. O seu Pontius Glaucus, em versos tetrâmetros, ainda que louvado parcimoniosamente pelos coevos, parece ser obra medíocre. O gato pela poesia, porém, jamais abandonou o admirável orador. Bem mais tarde tentou escrever um poema acerca do seu próprio consulado.

Os contemporâneos não pouco zombaram das predileções poéticas de Cícero, e Quintiliano cita um verso ciceroniano notando-lhe a horrível cacofonia (Inst. Or. IX, IV, 41; XI, I,24), verso esse que figura na X Sátira de Juvenal, verso 122:

O fortunatam natam me consule Roman! (Ó Roma afortunada, nascida sob o meu consulado!)

Aos 16 anos Cícero vestiu a toga viril; iniciou-se, a seguir, no estudo das leis e do ritual. Foram seus mestres os dois Cévolas, o áugure e o pontífice; nesses juvenis estudos tanto se distinguiu que logo escreveu um tratado sobre direito civil, segundo o testemunho de Aulo Gélio, obra que não chegou até nós: De Jure Civili in Arte Redigendo (De como fazer do direito civil uma arte), Aulo Gélio, Noctes Atticae, I, 22.

As leis romanas exigiam que todo  cidadão servisse à república, e Cícero não se furtou a essa obrigação. Em 87 a.C. tomou parte na campanha de Sila contra os confederados italianos, servindo sob as ordens do cônsul Pompeu Estrabão. De regresso a Roma, frequentou as aulas de Filão, grego natural de Larissa, cidade da Tessália, e chefe dos Acadêmicos, de Diódoto, o Estóico, e de Molão de Rodes, célebre filósofo e retor.

Com 26 anos iniciou-se Cícero no Foro, pronunciando a eloquente defesa de Quíncio, Pro Quinctio, tendo como adversário o famoso jurisconsulto Hortêncio. Por esse tempo, Crisógono, liberto de Sila, adquiriu por duas mil dracmas os bens de um homem que o ditador havia feito morrer, como proscrito; Róscio, filho e herdeiro do morto, indignado com tamanha desfaçatez, provou que os bens vendidos por tão baixo preço valiam 250 talentos. Sila que se viu convencido de injustiça, irritadíssimo contra Róscio, acusou-o, por instigação do liberto, de parricídio. 

Ninguém ousou defendê-lo, temendo a crueldade de Sila. O jovem Róscio, abandonado de todos, recorreu a Cícero; esse, atendendo aos amigos que lhe suplicavam aceitasse a causa, aproveitando, destarte, o ensejo que se lhe apresentava de entrar na carreira da glória, acedeu em defendê-lo. O sucesso dessa defesa atraiu a admiração geral sobre o novel advogado; mas o temor do ressentimento de Sila fez com que se dirigisse à Grécia, a pretexto de tratar da sua saúde um tanto abalada.

Na verdade, segundo o testemunho de Plutarco e de outros autores contemporâneos, Cícero não gozava de boa saúde; magro e descarnado, sofria do estômago, que tinha tão fraco a ponto de poder alimentar-se somente uma vez ao dia, com alimentos leves e parcos.

Na Grécia, Cícero ouviu as lições de Antíoco, o Ascalonita. Este já afastara da nova Academia e escola de Carnéades de Cirene, e abraçara a maior parte dos dogmas do Pórtico, a doutrina dos estoicos, a escola de Zenão. Cícero amava a filosofia e dedicou-se a ela com o maior entusiasmo, convencido de que um bom orador, antes de tudo, deveria ser bom filósofo. Projetava, segundo consta, renunciar à carreira de advogado e retirar-se para Atenas, a fim de viver uma vida tranquila e sossegada entregue às lucubrações filosóficas. Logo fê-lo esquecer todos os seus planos; esteve, antes, em Rodes e na Ásia, onde frequentou as escolas dos retores Xénocles, de Adramita, Dionísio, de Magnésia, península e província da Tessália, e Menipo, o Cário. Em Rodes, ligou-se estreitamente aos filósofos Apolônio Molão, de Alabanda, e Posidônio, escritor grego nascido na Síria e discípulo de Panécio.

No ano de 77 vemo-lo em Roma, e, nessa mesma época, casava-se com Terência. No ano 75, como questor, esteve na Sicília, passando depois para Siracusa, onde se diz ter descoberto a sepultura de Arquimedes. Por causa da escassez de trigo que afligia Roma, teve que enviar para a capital grandes quantidades daquele cereal, mas procedeu com tanta justiça e tamanha bondade, que conquistou as boas graças de todos os sicilianos.

Célebre ficou sua ação contra Cornélio Verres, ex-pretor da Sicília, que cometera revoltantes excessos. Nessa causa Cícero fez antes a defesa da espoliada Sicília, que ataques hostis ao desavergonhado Verres, que era apoiado por toda a aristocracia. Quinto Cecílio, cúmplice de Verres, foi seu principal contendor; seu principal contender; seu primeiro discurso contra o espoliador foi tão contundente, que o acusado não quis aguardar a sentença; foi condenado, e a fama de Cícero cresceu de vulto.

Edil em 69 e pretor em 68, apoiou calorosamente a votação da lei Manília, que concedia a Pompeu o comando supremo da campanha contra Mitridates, em substituição a Luculo, e que lhe conferia poderes extraordinários. Pompeu era, então, o chefe da oligarquia, e não foi sem repugnância que Cícero abraçou a sua causa, esperando reconciliar o Senado com os cavaleiros por meio de política mais liberal e expansiva. Não resta dúvida que, na sua atitude de apoiar Pompeu, havia muito egoísmo: o desejo de obter os favores do partido dominante e obter, assim, o consulado. Apoiado pela aristocracia, apresentou-se como candidato, juntamente com Catilina, de quem então já se suspeitava de conspirar contra a República, e que cometera incesto com a própria filha e matara um irmão. Não obstante a má fama de Catilina, a ele aliou-se para fazer a campanha eleitoral. Obteve o consulado em 63. Catilina, que não fora tão afortunado, recomeçou a maquinar contra a República. Cícero, que descobrira tais intrigas, fê-las abortar, e, apesar da oposição de César, conseguiu que o Senado o condenasse, bem assim como a seus principais cúmplices. Datam dessa época as imortais Catilinárias, quatro maravilhosas orações, cujo exórdio ameaçador e majestoso da primeira assim começa: Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? (Até quando finalmente, ó Catilina, abusarás da nossa paciência?).

O Senado e o povo romano conferiram-lhe o título de “pai da pátria, pater patriae”, libertador e novo fundador de Roma.

No seu consulado, lutou Cícero pela elevação da classe dos cavaleiros, convertendo-a em classe intermediária entre os senadores e a plebe.

Os louvores que lhe prodigalizaram e a sua natural vaidade que não perdia ocasião de se por em evidência, atraíram-lhe o despeito e a inveja de muitos, principalmente dos amigos e partidários de Catilina; passaram a chamá-lo “o terceiro rei estrangeiro”. No fim do seu consulado, quando se preparava para pronunciar o discurso que em tais casos ia fazer-se, o tribuno Metelo tomou-lhe a palavra ordenando-lhe que se limitasse a jurar não haver feito nada contra a República. Cícero exclamou: Juro haver salvo a pátria! E a multidão, excitada, a uma só voz, gritou: Juramos que dizes a verdade!

O principal crime que então se imputava a Cícero era o de ter feito executar os cúmplices de Catilina sem processo.

Clódio, patrício de maus costumes e que havia profanado os mistérios da Boa Deusa, fora acusado por Cícero de sacrílego; conseguiu sair absolvido do processo, e buscava ocasião para vingar-se. Tomou gladiadores a soldo, fez-se adotar por uma família plebeia e pode, destarte, tornar-se tribuno da plebe, logrando impor-se aos triúnviros e aos cônsules. Cícero, precavido, comprou outro tribuno,  Nônio, que se deveria opor a todos os atos do seu colega. Clódio, porém, jurou que não pretendia praticar nenhuma ação que pudesse prejudicar Cícero, e este, ingenuamente, consentiu que Nônio abandonasse a oposição; assim o caminho ficou livre para que o sacrílego pudesse agir. Sem tardança, conseguiu Clódio que se aprovasse a lei que considerava culpado todo aquele que houvesse enviado ao suplício um cidadão sem a confirmação da sentença pelo povo. Cícero compreendeu que a lei fora elaborada expressamente para ele; vestiu-se de luto, deixou crescer a barba e suplicou aos amigos que o defendessem. Também o Senado se pôs de luto; os cônsules ordenaram-lhe que voltasse a envergar a púrpura.

2000 cavaleiros, igualmente enlutados, montavam guarda à casa de Cícero, sempre insultados com soezes injúrias pelos sicários de Clódio. Luculo aconselhava-o a lutar à frente dos seus contra o sacrílego; Catão e Hortêncio, mais ponderados e experientes, admoestavam-no a que não imitasse Catilina; César convidou-o a partir em sua companhia para as Gálias, e, não tendo Cícero aceito seu convite, ficou grandemente ressentido; Pompeu abandonando-o à sua própria sorte, retirando-se para sua casa de campo, pagando, dessa maneira, com a mais crua ingratidão o apoio que o tribuno sempre lhe prestara. Cícero viu-se sozinho e desamparado, ainda que verdadeiras multidões o lamentassem; mas nada podiam fazer por ele. Clódio, da tribuna, acusou-o; o orador não teve outra alternativa senão a de exilar-se voluntariamente.

A cidade de Hipônio fechou-lhe as portas; a Sicília igualmente o rechaçou, e finalmente, um Brundísio, cidade e porto da Calábria, no sul da Itália, atual Brindes, o acolheu Lênio Flaco; mas, não se julgando suficientemente seguro, dirigiu-se para a Mísia, província da Ásia Menor, encontrando em Diráquio, atual Durazzo, cordial acolhida. Com o fito de permanecer mais perto da Pátria, dirigiu-se Tessália, onde chorou de desespero; não se suicidou unicamente por receio de ser a sua memória esquecida dos homens. Naquela oportunidade lembrou-lhe o oráculo de Delfos, que, quando da sua estada em Atenas, fora consultar: “Se quiseres a maior glória, hás de seguir não a opinião do povo mas a tua própria natureza”.

João Batista Nunes é psicólogo e acadêmico de Direito.




[1] Texto de acordo com a tradução remida do Latim de Tassilo Orpheu Spalding, in: Clássicos Cultrix, 1964.

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