quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

A BODEGA DE SEU GARRINCHA

O ano é 1985. O bairro do Jeremias acorda aos poucos para mais um dia de trabalho. As portas e janelas vão apresentando as primeiras caras sonolentas, cabelos espichados e som de menino novo chorando. Seu Manuel já passou montado em sua bicicleta com marmita ao bagageiro. Dizem as mulheres da Lavanderia que a filha dele, Ritinha, a mais nova, "se perdeu" com um marginal que foi preso ontem pelo Comissário do Bairro.

O cheiro do café quentinho paira no ar. "Menino! Acorda pra comprar pão!" - Grita Dona Maria. O menino, ainda tonto da noitada de sono, esfrega os olhos remelentos, passa pelo móvel junto a rede onde jaz mais um espichado, vencido pelo sono, e vai à bodega de Seu Garrincha.

Naquele estabelecimento comercial pioneiro, comum, tradicional, pitoresco, indispensável à época, tem de tudo que você possa imaginar. Tem rolo de fumo "Do Bom" logo em cima do balcão. Tem mortadela das boas, tem frutas, verduras, material de limpeza. Tem peças de cordas, até arreios tem. Tem leite em pó, mas também tem leite de vaga tirado faz meia hora. Pendurado no telhado da bodega tem chinelos, vassouras de todos os tipos. Mas o especial mesmo fica em cima do balcão: toucinho de porco. Ao lado da peça de charque. Tudo ajeitado e conservado pelo sal grosso.

Quanto ao proprietário, dizem os fofoqueiros do bairro que era soldado de polícia, mas deu um negócio na cabeça dele e ele foi aposentado. Seu Garrincha, altura mediana, forte e barrigudo, com faca afiada à mão, sempre apto para atender da melhor forma possível o freguês. Dá logo um rasgo numa lasquinha de queijo de coalho, do menos amarelo é claro, para agradar o freguês.

No canto da parede, perto da balança de ferro, ficava o bendito caderno, com uma caneta azul, amarrada num cordão. Era o caderno dos fiados. Dificilmente alguém passava a perna em Seu Garrincha. Talvez porque fiado não se vende a toda qualidade de gente. E quem é comerciante sabe disso muito bem.

Nos fins de semana era comum algumas figuras se encontrarem na Bodega do Garrincha. Era a turna da pinga. Afinal, tudo pode faltar numa bodega. Mas bodega que se presta não pode faltar uma boa pinga. E Seu Garrincha tinha cachaça para ninguém botar defeito. Lá estava Bio do Cavaquinho, dando um verdadeiro show. Cantava, tocava, dizia uma piada, e risos e mais risos. E Seu Gerealdo, o fotógrafo? De dia, um profissional muito requisitado, de noite, um boêmio com seu violão. Para completar, Roberto Carlos, cego de um olho, sem técnica musical alguma, mas quando tomava umas daquelas brabas, punha seu violão velho para tocar. Era um artista. Com cabelos longos, sentia-se envaidecido quando alguém, passando pela rua, gritava: "Roberto Carlos! Roberto Carlos!"

Quando essa turma se reunia na Bodega do Garrincha a musicalidade se expressava. Um torresminho aqui, uma pinga ali, e tome música! Pessoal repeitador, gente de família.

Era ali, na final da rua São Gonçalo, para chegar no Promorar, que esse intenso comercio se desenvolvia. Mesmo limitado pelo espaço, a Bodega de Seu Garrincha tinha de tudo. Se a pessoa não conseguiu dormir com problemas na boca do estômago, a Bodega haveria de ter a solução.

Não duvido que até serviço bancários, como empréstimos rápidos e descomplicados, que dispensam a tagarelice e papelada de banco, Seu Garrincha dava jeito. Até de o sujeito tivesse uma geladeira ou fogão para pegar noutro bairro, só era acertar com Seu Garrincha que ele mandava busca na sua D10. Pronto! Problema resolvido.

A Bodega de Seu Garrincha, como ficou configurado, é espaço de cultura e arte, de negócios, de prestação de serviços, de aquisição de bens de consumo, é o point do bairro. É lugar de informação, de conhecimento dos causos, de quem morreu, quem viajou para o Rio, quem foi preso, quem casou, quem se "perdeu", quem se achou. Enfim, é um espaço rico que só o bairro pode produzir.

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