terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

DONA JARINA


Os idos eram os longínquos anos 1980. O Bairro do Jeremias nasceu já no estigma da dependência. Há muito tempo, passava o velho Jeremias cobrando uma espécie de taxa pelo uso do terreno no qual estavam construídas as casas de um misto de gente, maioria trabalhadora, metidas nas múltiplas formas de subemprego. Essas visitas que ocorriam aos domingos pela manhã ao final de cada mês foram levadas adiante pela viúva muito depois da morte do velho.

Ali na XV de Novembro, uma ladeira acentuada, a Rua Conde de Monte Cristo (chamada pelos populares simplesmente de "A Conde Monte Cristo) representava um dos acessos ao bairro. E no pé da ladeira morava Dona Jarina.

Um negra com cabelos que já apontavam o avançar da idade. Sem qualquer escolaridade dedicou sua vida a trabalhar como babá, lavadeira, arrumadora das casas das madames do Alto Branco, um bairro onde morava a classe mais representativa das boas posses de Campina Grande.  

Jarina inventou de entrar na lei dos crentes e passou a frequentar uma igreja da Assembleia de Deus, mais acima, na Rua São Cosme. 

A nega Jarina era uma criatura de coração largo. Obesa, pés inchados, sempre reclamando de dores nos quartos. Morava em casa própria. Uma casinha  no sopé da ladeira, dessas de cuminheira baixa. Um portão pequeno  e apenas um  passo adentro separava a rua  da porta. Na sala,  hábitos simples. Um tamborete de madeira com tinta desgastada. Uma cortina de chita com aquelas rosas estampadas. Um retrato antigo de um  casal que já se foi. 

Um  rádio ABC de revestimento plástico,  e com o seletor quebrado, mas a nega asseverava que era nele que ela não perdia o programa Dramas da Cidade com Clóvis de Melo. Muito do que se ouvia, tinha haver com  fatos aqui e ali envolvendo a pobre gente do Jeremias.

Das quenturas próprias das mulheres sem ômi e a desoladora solidão, Dona Jarina não teve outra alternativa senão arranjar um tal de João, vigia de Grupo Escolar, que tinha um filho meio abestado. 

No início tudo foi uma maravilha só. João se mudou para a casa de Dona Jarina. Ele andava com um revolver calibre 22 e um cacetete, desses com um cordão que envolvia o pulso. 

Para falar de um tipo étnico, João era a perfeita mistura de negro mais índio, mais sertanejo, mais caririzeiro, uma evolução de guenzo com o coice da jumenta. Era feio, em síntese. Mas isso não define o caráter de ninguém! Poderia ser um exemplar trabalhador, cumpridor de seus deveres e um excelente companheiro para sua nega, nesse amor recém arranjado.

Quando a energia da libido caiu na rotina do fogo morto, João logo passou de mal educado para ríspido, gritalhão. Passou a se comunicar através de bofetadas e ponta-pés. Pobre Jarina! Recebia coronhadas na cabeça. Aparecia na igreja aos prantos, narrando as grosserias de João.

A vida relativamente tranquila de Dona Jarina foi se tornando um verdadeiro inferno até que um dia a vizinhança trouxe a notícia: acararam de matar João na base do tiro e da facada, ali mesmo, numa distância de uns 200 metros.

Ninguém sabe se aquele choro da viúva era de tristeza pela cena trágica (de longe, o corpo de um miserável estendido no chão) ou se lá no fundo era a carta de alforria que acenava novos ares de liberdade de um jugo opressor.

O tempo passou, Dona Jarina já velha e dorida dos quartos e aquele lenço que sempre trazia na cabeça e a solidão se somaram para lhe afrouxar alguns parafusos do juízo. A última cena era Jarina indo em direção onde morava galego Vavá, cantarolando em gesto de marcha, no meio da chuva: "marcha soldado cabeça de papel quem não marchar direito vai preso no quartel..."

Autor
João Batista Nunes 



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