quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

CONSIDERAÇÕES SOBRE MEDICINA LEGAL

A medicina lato senso assumiu com o decorrer do tempo um aparato teórico e prático complexo indo para além das fronteiras da busca pela solução dos males físicos e mentais que acometem as pessoas.

O Professor Gerson Odilon Pereira¹, por exemplo, leciona que a medicina tradicional, objetiva o tratamento e a cura, é a 'arte de curar', como definida por Hipócrates. Desmembrou-se com o correr dos tempos e o envolver da ciência, na Higiene que é a "Arte de Prevenir". 

Em 1575 surgiu, então, novo esplêndido ramo, Medicina Legal a "Arte de relatar em juízo" no conceito simplista de Ambróase Paré.

Há, porém, outras breves definições igualmente importantes. Como bem destacado por Buarque Gusmão (2001) apud Odilon Pereira: "É a aplicação de conhecimentos médicos aos problemas judiciais",(Nério Rojas); "É a ciência do médico aplicada aos fins da ciência do Direito", (Buchner); "É a arte de pôr os conceitos médicos ao serviço da administração da justiça", (Lacassagne). 

Há outras possíveis definições, tais como: "É o estudo do homem são ou doente, vivo ou morto, somente naquilo que possa formar assunto de questões forense", (De Crecchio); "É a disciplina que utiliza a totalidade das ciências médicas para dar respostas às questões jurídicas", (Bonnet); "É a aplicação dos conhecimentos médico - biológicos na elaboração e execução das leis que deles carecem", (F. Favero).

Bastante elucidativa é a posição do consagrando Dr. Genival Veloso de França² ao afirmar que a Medicina Legal é uma ciência de largas proporções e de extraordinária importância no conjunto dos interesses da coletividade, porque ela existe e se exercita cada vez mais em razão das necessidades da ordem pública e do equilíbrio social.

Esclarece o autor que "não chega a ser propriamente uma especialidade médica, pois aplica o conhecimento dos diversos ramos da Medicina às solicitações do Direito. Mas pode-se dizer que é Ciência e Arte ao mesmo tempo". 

É Ciência porque sistematiza suas técnicas e seus métodos para um objetivo determinado, exclusivamente seu, sem com isso formar uma consciência restrita nem uma tendência especializada, por isso exigindo uma cultura maior e conhecimentos mais abrangentes do que em qualquer outro campo da Medicina, como destacado por esse grande mestre, Dr. Genival Veloso. 


De maneira didática, como estruturado por Delton³, podemos dividir a Medicina Legal nos seguintes campos de estudos: Antropologia Forense. Estuda a identidade e a identificação, seus métodos, processos e técnicas; Traumatologia Forense. Trata das lesões corporais e das energias causadoras do dano; Sexologia Forense. Versa sobre a sexualidade normal, patológica e criminosa. Analisa as sutis questões inerentes à Erotologia, à Himenologia e à Obstetrícia forense; Asfixiologia Forense. Vê as asfixias em geral, do ponto de vista médico e jurídico. Detalha as particularidades próprias da esganadura, do estrangulamento, do enforcamento, do afogamento, do soterramento, da imersão em gases irrespiráveis etc., nos suicídios, homicídios e acidentes.

Continuando, há também a Tanatologia. Preocupa-se com a morte e o morto em todos os seus aspectos médico-legais, os fenômenos cadavéricos, a data da morte, o diagnóstico da morte, a morte súbita e a morte agônica, a inumação, a exumação, a necropsia, o embalsamento e a causa jurídica da morte; a Toxicologia. Estuda os cáusticos, os envenenamentos e a intoxicação alcoólica e por tóxicos, pelo emprego de processos laboratoriais. Graças à sua notável evolução é, atualmente, especialidade que empresta seu saber à Medicina Legal; a Psicologia Judiciária. Versa sobre os fenômenos volitivos, afetivos e mentais inconscientes que podem influenciar na formação, na reprodução e na deformação do testemunho e da confissão do acusado e da vítima. Analisa, ainda, o depoimento dos idosos e dos menores etc.; a Psiquiatria Forense. Estuda as doenças mentais, a periculosidade do alienado, as socioneuropatias em face dos problemas judiciários, a simulação, a dissimulação, os limites e modificadores da capacidade civil e da responsabilidade penal; a Policiologia científica. Visualiza os métodos científico-médico-legais empregados pela polícia na investigação criminal e no deslindamento de crimes; a Criminologia. Estuda os diferentes aspectos da gênese e da dinâmica dos crimes; a Vitimologia. Trata da análise racional da participação da vítima na eclosão e justificação das infrações penais; e a Infortunística. Preocupa-se com os acidentes do trabalho, com as doenças profissionais, com a higiene e a insalubridade laborativas.

Em linhas gerais, a Medicina Legal busca produzir respostas para as mais variadas indagações prático-cientificas com fins de esclarecimento à justiça. Essas respostas servem, entre as muitas finalidades, para corroborar as decisões nos tribunais.

_____________
¹Professor Gerson Odilon Pereira: in Medicina Legal. Conselho Regional de Medicina de Alagoas - CREMAL, 2001;
² FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. 10ª edição. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2015;
³CROCE, Tolton. Manual de Medicina Legal. 8ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019


DONA JARINA


Os idos eram os longínquos anos 1980. O Bairro do Jeremias nasceu já no estigma da dependência. Há muito tempo, passava o velho Jeremias cobrando uma espécie de taxa pelo uso do terreno no qual estavam construídas as casas de um misto de gente, maioria trabalhadora, metidas nas múltiplas formas de subemprego. Essas visitas que ocorriam aos domingos pela manhã ao final de cada mês foram levadas adiante pela viúva muito depois da morte do velho.

Ali na XV de Novembro, uma ladeira acentuada, a Rua Conde de Monte Cristo (chamada pelos populares simplesmente de "A Conde Monte Cristo) representava um dos acessos ao bairro. E no pé da ladeira morava Dona Jarina.

Um negra com cabelos que já apontavam o avançar da idade. Sem qualquer escolaridade dedicou sua vida a trabalhar como babá, lavadeira, arrumadora das casas das madames do Alto Branco, um bairro onde morava a classe mais representativa das boas posses de Campina Grande.  

Jarina inventou de entrar na lei dos crentes e passou a frequentar uma igreja da Assembleia de Deus, mais acima, na Rua São Cosme. 

A nega Jarina era uma criatura de coração largo. Obesa, pés inchados, sempre reclamando de dores nos quartos. Morava em casa própria. Uma casinha  no sopé da ladeira, dessas de cuminheira baixa. Um portão pequeno  e apenas um  passo adentro separava a rua  da porta. Na sala,  hábitos simples. Um tamborete de madeira com tinta desgastada. Uma cortina de chita com aquelas rosas estampadas. Um retrato antigo de um  casal que já se foi. 

Um  rádio ABC de revestimento plástico,  e com o seletor quebrado, mas a nega asseverava que era nele que ela não perdia o programa Dramas da Cidade com Clóvis de Melo. Muito do que se ouvia, tinha haver com  fatos aqui e ali envolvendo a pobre gente do Jeremias.

Das quenturas próprias das mulheres sem ômi e a desoladora solidão, Dona Jarina não teve outra alternativa senão arranjar um tal de João, vigia de Grupo Escolar, que tinha um filho meio abestado. 

No início tudo foi uma maravilha só. João se mudou para a casa de Dona Jarina. Ele andava com um revolver calibre 22 e um cacetete, desses com um cordão que envolvia o pulso. 

Para falar de um tipo étnico, João era a perfeita mistura de negro mais índio, mais sertanejo, mais caririzeiro, uma evolução de guenzo com o coice da jumenta. Era feio, em síntese. Mas isso não define o caráter de ninguém! Poderia ser um exemplar trabalhador, cumpridor de seus deveres e um excelente companheiro para sua nega, nesse amor recém arranjado.

Quando a energia da libido caiu na rotina do fogo morto, João logo passou de mal educado para ríspido, gritalhão. Passou a se comunicar através de bofetadas e ponta-pés. Pobre Jarina! Recebia coronhadas na cabeça. Aparecia na igreja aos prantos, narrando as grosserias de João.

A vida relativamente tranquila de Dona Jarina foi se tornando um verdadeiro inferno até que um dia a vizinhança trouxe a notícia: acararam de matar João na base do tiro e da facada, ali mesmo, numa distância de uns 200 metros.

Ninguém sabe se aquele choro da viúva era de tristeza pela cena trágica (de longe, o corpo de um miserável estendido no chão) ou se lá no fundo era a carta de alforria que acenava novos ares de liberdade de um jugo opressor.

O tempo passou, Dona Jarina já velha e dorida dos quartos e aquele lenço que sempre trazia na cabeça e a solidão se somaram para lhe afrouxar alguns parafusos do juízo. A última cena era Jarina indo em direção onde morava galego Vavá, cantarolando em gesto de marcha, no meio da chuva: "marcha soldado cabeça de papel quem não marchar direito vai preso no quartel..."

Autor
João Batista Nunes 




segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

O CARRO


Não fazia muito tempo, andar a cavalo era o meio de transporte mais rápido e prático de mover as ações humanas. Símbolo de força e resistência, mas limitado em muitos aspectos. As pessoas de maior posse passaram a usar a força humana para pequenos deslocamentos pela cidade desde os chineses. Eram caixas de madeiras acolchoadas por dentro. Depois, para a salvação dos braços de escravos, a charrete com cavalos passou a evoluir levando até oito pessoas e na parte externa as bagagens. É possível falar de bondes em trilhos de ferro, mas de tração animal. O trem toma conta do mundo. Chega em fim a era dos automóveis movidos a motor de combustão interna. A multiplicidade de modelos rompeu de vez com aquela mania original de patronizar os modelos de forma monocromática. Os carros evoluíram e ditaram o ritmo em muitos cenários da economia. Diesel para gasolina, gasolina para álcool, álcool para gás GNV, GNV para hidrogênio, hidrogênio para eletricidade e pulsos eletromagnéticos. De manual para a completamente auto dirigível. O prazer do carro já foi inclusive tese de doutorado na área da psicologia comportamental americana, num estudo da década de 1970 associando o comportamento sexual de conquista do macho em relação ao fêmea ao carro, tendo como um dos fatores o exibicionismo, as taras agressivas entre outros. O carro já marcou a história afetiva de muita gente, de gerações, é troféu de colecionadores, berço de nascimento de quem não conseguiu chegar a tempo na maternidade. Foi objeto de estudos criminalísticos, foi também onde os avanços provocados pela ebulição de hormônios próprios do encontro entre um homem e uma mulher se desenrolaram mudando histórias, umas que resultaram em casamentos às pressas, outros que não passaram de arroubos da juventude. O carro talvez durará em muito seus encantos, e em vários lugares desse vasto território pessoas há que se desloquem tendo como transporte o cavalo, mas quem tem pressa vai de carro.

João Batista Nunes

O QUE SE PODE APRENDER COM AS ARTES MARCIAIS?




Passo a lhes apresentar uma visão tradicional, ortodoxa, do que se pode aprender com a prática das artes marciais. Em primeiro lugar, seja qual for a modalidade de lutas, há muito o que se aprender, começando com a disposição mental conhecida como paciência. É preciso se utilizar da paciência para incorporar os movimentos, conferindo forma a cada técnica. Com calma, construindo os esquemas mentais para o desenvolvimento perfeito das manobras sem perder de vista os detalhes peculiares, o aprendiz segue se aperfeiçoando.

Após essa fase, vem da constate execução das técnicas. A repetição dos exercícios e suas variantes leva a introjeção que permite ao praticante se aproximar cada vez mais da naturalidade própria de quem mantém a constância. 

A meta: desenvolver habilidades físicas e mentais que fortaleçam o autocontrole, o equilíbrio. Um dos maiores males da atualidade é a falta de controle, o desequilíbrio que têm levado pesquisadores a estudar a temática da inteligência emocional como fator de sucesso na vida pessoal.

Logo, partindo desta visão, quem pratica algum tipo de arte marcial para promover a violência, para mostrar força diante de quem não tem condições de se defender, comente um sério equívoco em relação a si. Erra quem ensina e quem pratica. Irresponsabilidades compartilhadas. 

Quem pratica artes marciais pratica a cultura da não-violência, do respeito ao próximo, da valoração da boa convivência. E mesmo em situações de ameaças que a pessoa pode evitar, essa caminho é sem dúvida escolhido. Mais forte é quem sabe que pode vencer facilmente o embate, e mesmo assim, evita-o.

Claro que se a situação não oferecer outra saída, às vezes até envolvendo pessoas em risco, com a devida cautela e análise das variáveis que favorecem a reação segura, sem danos colaterais, de acordo com as hipóteses  amparadas em lei, o resultado do aprendizado da arte do guerreiro deve ser usado sem temor e com destreza. 

Imagens de vídeos veiculados nas mídias sociais mostrando lutadores de digladiando, espargindo sangue, ou homens em sua maioria com potencial de combate superior agredindo e humilhando violentamente mulheres, idosos, ou pessoas integrantes de grupos sociais minoritários, pessoas em situação de rua, não são dignos das artes marciais tradicionais, devem ser expulsos do Dojô, e se tornar exemplos de vergonha e má conduta por parte de seus pares.

Quem pratica artes marciais não sente necessidade alguma de provar sua masculinidade ou quaisquer outros sentimentos egoinfrados. Ele treina para se autoconhecer e se aperfeiçoar em técnicas que condicionam o corpo e a mente para a manutenção da saúde. Esse é o caminho do guerreiro.


Autor: João Batista Nunes