RUSUMO:
A
abordagem do menor infrator representa uma das temáticas mais desafiadoras da
atualidade; assunto que tem inquietado os protagonistas sociais em várias
épocas distintas, sintetizando paradigmas institucionais envolvidos na busca de
respostas eficientes e eficazes no trato das medidas socioeducativas. O
presente artigo tem o objetivo de apresentar considerações sobre as
aproximações teóricas que discutem o tema sob o prisma psicológico, social e
jurídico, tendo como base a obra de Zamora et
al.(2005), utilizando-se para isto, o estudo bibliográfico proposto por
Marconi e Lakatos (2006). A questão da criança e do adolescente em situação de
vulnerabilidade social é destacada como um verdadeiro gargalo nas políticas
públicas direcionadas a respostas efetivas, vez que a Constituição de 1988 é reputada
como cidadã justamente por elencar um rol de direitos e garantias individuais e
sociais fundamentais não devendo mais se conceber no Brasil o funcionamento de
instituições para onde vão os menores infratores cumprirem as medidas
socioeducativas com claras feições de depósitos humanos em “escolas do crime.”
Palavras-chave:
Psicologia. Legislação Penal. Contravenção. Criança.
O Brasil do século XXI,
apesar dos avanços significativos no campo social, ainda convive, de forma
preocupante, com a insuficiência dos paradigmas institucionais em face da
crescente delinqüência infanto-juvenil, um dos principais gargalos das
políticas governamentais sem respostas concretas e efetivas. O presente artigo
se propõe a analisar, através do estudo bibliográfico exploratório, a questão
do menor infrator e a problemática dos paradigmas institucionais, tendo como
texto básico a obra “Para além das
grades: elementos para a transformação do sistema socioeducativo”, buscando
contribuir para o aprofundamento da temática.
Dentro dessa
perspectiva, é oportuno elencar pontos culminantes do desenvolvimento
institucional e as principais ideias que justificaram seu funcionamento,
resgatando exemplos de casas de recolhimento europeu para então focalizar o
Brasil, afim de que se possa traçar um panorama da problemática atual.
A história do
desenvolvimento das instituições destinadas a recolher menores infratores para
fins disciplinares é a história de uma constante busca por soluções efetivas
para o que representa uma população crescente: a da delinqüência
infanto-juvenil.
Quanto ao procedimento
metodológico, utilizado para atingir os objetivos propostos neste artigo,
optou-se pela pesquisa bibliográfica do tipo exploratório, a qual procura
explicar um problema a partir de referências teóricas publicadas em documentos,
e que pode ser realizada independentemente ou como parte da pesquisa descritiva
ou experimental; buscando-se conhecer e analisar as contribuições culturais ou
cientificas do passado existente sobre um determinado assunto, tema ou
problema, servindo para consubstanciar o processo de produção teórica.
Marconi & Lakatos
(2006) afirmam que a pesquisa bibliográfica abrange todo o acervo existente
sobre determinado assunto, desde as editorações avulsas, boletins, jornais,
revistas, livros, pesquisas, monografias, teses, material cartográfico e outros
meios de divulgação, a exemplo das atuais mídias integradas.
Dando início a
exposição teórica propriamente, destaca-se que o problema de menores
delinqüentes, foi habilmente trabalhado por Phelippe Ariès em História da Vida Privada, parte I, (2009)
e História Social da Criança e da Família
(1978), um importante estudo iconográfico no qual o autor aborda a inserção da
criança na vida social na Idade Medieval; também tomado como objeto de estudo,
no aspecto da delinqüência, por Winnicott (2005), importante psicanalista que
dedicou parte de seu trabalho teórico ao tema; se traduz nestas obras um
importante elo que junto à obra de Zamona et.
al. (2005) propiciará uma aproximação teórica indispensável à compreensão dos
vários paradigmas institucionais que cristalizaram o fenômeno de grande
relevância social.
Os
primórdios: para além dos limites da família. A gênese
histórica das implicações envolvendo a criança remonta a períodos imemoriais.
Porém, um panorama satisfatório pode ser sintetizado na ampla pesquisa
empreendida por Ariès (2009) para quem, citando a vida romana em seus
primórdios, a criança era desde cedo submetida à escolha ou rejeição.
Ariès (op. cit., pag. 27) destaca que o
nascimento de um romano não era apenas um fato biológico. Ou seja, os recém
nascidos só vinham ao mundo, só eram recebidos na sociedade em virtude de uma
decisão do chefe da família. Neste ponto, a contracepção, o aborto, o enjeitamento
das crianças de nascimento livre e o infanticídio do filho de uma escrava eram
práticas usuais e perfeitamente legais.
Em Roma, o cidadão não
tinha um “filho”, ele o tomava, o levantava (tolkre). Era prerrogativa do pai erguê-lo em sinal de plena aceitação.
O contrário resultaria na rejeição da criança. O estigma da criança entregue à
própria sorte é algo, realmente antigo e suas raízes são refletidas até hoje na
sociedade pós-moderna camuflada nas multiformes facetas do psicodinamismo
social.
O mesmo Ariès (1981)
avança com seu estudo iconográfico, no qual fica delineada “a invenção da
infância”. Estudo feito com base nas gravuras pintadas na Idade Medieval,
retratando elementos da família. O autor mostra a forma como as crianças eram
retratadas dando a clara ideia da visão usual de “adulto miniaturizado”,
ignorando-se a existência de uma fase hoje conhecida como infância.
Essa visão de “adulto
miniaturizado” que se estendeu da Idade Média à fase da Segunda Revolução
Industrial correspondeu aos usos e costumes europeus onde crianças ainda muito
precoces eram tratados com rigidez e utilizados nas frentes de trabalho com
extensas horas diárias de labor juntamente com os adultos.
No século XIX estudos
psicológicos começaram a delimitar o campo da psicologia infantil, com destaque
para a psicanálise freudiana; mas é com a contribuição de Winnicott (2005) que
a questão da delinqüência infanto-juvenil vai ganhando contornos importantes à
compreensão da menor idade infratora, além de possibilitar aos estudiosos um
aprofundamento mais acurado por parte dos estudiosos acerca das
particularidades psicológicas e sociais das crianças e adolescentes que
servisse de base para a estruturação, em tese, das instituições para onde se
encaminhava àqueles que a justiça determinasse.
Nesse sentido, o Brasil
possui uma longa tradição de institucionalização de crianças e adolescentes das
camadas populares, como bem explicitado por Zamora (2005; p. 21):
“[...] Das Casas
de Expostos e Colégios Pios para Órfãos do período colonial, a jovem nação
independente viu surgirem novas modalidades de internatos para os desvalidos do
período imperial. O estudo abarca o período da estruturação do sistema oficial
de apreensão e internação dos menores delinqüentes, até a Era Vargas, com a
criação do primeiro órgão nacional de assistência a menores”.
A literatura brasileira
mostra os primórdios das iniciativas de recolhimentos de menores, em primeira
mão pelas ordens religiosas, depois pela iniciativa do recém criado Estado,
representado pela Nova República do Brasil. A frágil situação de
enfraquecimento econômico e empobrecimento da grande massa falida de donos de
produção, e uma super população de ex escravos que deram inicio aos grandes
aglomerados acabaram por produzir e acentuar a questão da menor idade
desamparada e absorvida pela criminalidade.
Já em 1902, a cidade de
São Paulo se antecipara às ações decorrentes do intenso debate a respeito da
criação de estabelecimentos correcionais especiais para menores, criando o
Instituto Disciplinar.
Uma tentativa de
escapar as denominações que lembrassem prisões ou penitenciarias partindo da
proibição de recolher menores às cadeias, colocando-os junto com presos
adultos, envolvidos em toda sorte de crimes, foi a iniciativa do deputado
Candido Motta. Morais (1923) citado por Zamora (op. cit., p. 16) mostra que o
resultado desse projeto foi a criação do Instituto Educativo Paulista, nada
obstante o empenho para se exprimir um projeto modelar, não passou da
reprodução camuflada de um modelo prisional.
No que tange ao
Instituto Disciplinar havia critérios de recebimento e distribuição dos
internos em termos de serem ou não os menores egressos, sentenciados pela
justiça. Isso porque bastava o menor se encontrando perambulando pelas ruas de
São Paulo para se aprendido e encaminhado para a delegacia e o juiz para que
sua sorte fosse determinada.
Assim, de acordo com
Zamora, o Instituto “destinava-se não somente aos infratores das leis penais
dos 9 aos 21 anos (1ª Seção), mas também àqueles que o chefe de polícia
ordenasse internar, com a autorização do juiz competente” (ZAMORA, 2005; p.
16). Mas essa classificação vai além, atingindo também a ampla categoria dos
“moralmente abandonados”, definidos como filhos de condenados, os “pequenos
mendigos, vadios, viciosos e abandonados”, classificação esta, dada pelo
Decreto nº 1.079 de 30 de outubro de 1902.
O adensamento do estudo
de Zamora é conclusivo ao destacar que análise técnica posterior feita no
Instituto deixa nítida a falta de estrutura que impossibilitava a separação dos
menores pelos critérios previamente instituídos, não havendo ali quaisquer
distinções entre os criminosos sentenciados pela justiça e os meramente
recolhidos por questões não ligadas ao crime; o que reproduzia um quadro de
completa promiscuidade.
“O Brasil, em
pleno século XX, ainda mantinha menores de 14 e 15 anos, processados ou
condenados, nas prisões ordinárias em contato com velhos reincidentes, sob a
guarda de funcionários que não dispunham de preparo para a reeducação de
caracteres precocemente transviados” (Moraes, 1927: 66). Sua proposta consistia
na queima de etapas, devendo o Estado criar instituições educativas em vez de
prisões especiais.” (ZAMORA, op. cit.; p. 17).
Um avanço no sentido de
buscar corrigir essa problemática ainda na década de 1920 foi verificada no
âmbito do legislativo quando determinava-se a criação de uma escola de reforma
regida pela regulamentação da assistência e da proteção a menores abandonados e
delinqüentes. Era a lei da assistência que previa a criação no Distrito Federal
(1923) de um Abrigo para Menores exclusivo para acolher menores encaminhados
pela polícia e pela justiça de menores (ZAMORA, 2005; p. 17).
Já na cidade de Rio de
Janeiro as experiências institucionais em relação ao menor parecem evoluir em
relação a São Paulo, seguindo o mesmo descompasso em termo de se atingir o ideal
psicossocial e jurídico no trato com a menor idade infratora. O Ministério da
Justiça cria a Escola João Luíz Alves (1926) na antiga Colônia de Alienados,
convento na Ilha do Governador. Criou-se também nesse período o Serviço de
Assistência a Menores – SAM, seguindo a orientação da moderna pedagogia, como
destacado por Irma Rizzini, citada por Zamora (op. cit.; pags. 18,19).
É digno de destaque o
fato de que todas as instalações utilizadas para acolher os menores infratores
eram geralmente imóveis onde funcionou anteriormente velhas prisões, asilos,
enfim, construções que lembravam perfeitamente os campos de concentração
nazistas, de tenebrosos que se afiguravam.
Contrapondo-se a esse
modelo,
“O jurista e
diretor da Escola Quinze de Novembro, Lemos de Britto, designado pelo
Ministério da Justiça para executar a determinação da lei de assistência,
almejou a posição de estabelecimento modelar para a Escola. Obedecendo aos
princípios educacionais, Lemos de Britto idealizou uma escola sem muros e
grades. O sistema educacional previa a instrução primária, moral, profissional
e os exercícios físicos estado proibidos os castigos corporais sob qualquer
forma” (ZAMORA, op. cit.; p.18).
Mas os relatórios do
SAM, de 1944, dão conta que a Escola foi transferida para um pavilhão
construído nas terras da Escola Quinze de Novembro. As causas são deduzidas
pelas fugas e rebeliões que motivaram a mudança, representando uma derrocada no
plano original que objetivava conferir ao menor infrator um regime dentro dos
moldes pedagógicos.
É possível identificar
um avanço de pensamento para época, precisamente nas ações de Lemos de Britto
em relação às formas amenas de busca por um modelo de ressocialização e resgate
da infância e juventude, mas quando tudo parecia caminhar nessa vertente, fugas
e rebeliões além dos registros constantes de espancamentos infringidos pelos
próprios funcionários desses estabelecimentos tornavam a situação
insustentável. “A conturbada história das instituições correcionais é marcada
pelas esperanças que as reformas imprimiam às administrações dos diretores dos
sistemas assistenciais”, realça a autora (op. cit.; p.19).
Mesmo com o passar do
tempo, já nas décadas de 1950 e 1960, os problemas estruturais dos
estabelecimentos para delinqüentes não paravam de crescer. É estarrecedor o
relator do diretor do SAM nesse período, transcrito de acordo com o testemunho
de Nogueira Filho, 1956:
“Nas
instituições para “transviados” e “transviadas”, denominação que quase
suplantou a de “delinqüentes” Nogueira Filho encontrou todo tipo de
transgressão: corrupção, exploração de menores para fins ilícitos como roubo e
prostituição (feminina e masculina), castigos corporais e suplícios os mais
diversos. Em visita à Escola João Luiz Alves, o diretor flagrou a saída noturna
clandestina de “transviados” e suspeitou da prática da prostituição masculina,
comandada por um funcionário” (Nogueira Filho, 1956:115, citado por ZAMORA, op.
cit.; p. 20).
Outro caso registrado
por Nogueira Filho é o Pavilhão Anchieta, resquício de um pretenso modelo de
conversão nos mais altos valores sociais e morais, malogrado pelas intensas
revoltas incendiárias que se sucediam, resultando quase sempre em intervenções
da polícia e prisão dos mais rebeldes na penitenciária do Distrito Federal. O
tratamento mudava de conotação passando ao uso freqüente de torturas e
enclausuramento em cubículos.
Chega enfim o momento
em que se percebe a necessidade da recuperação dos “deformatórios” por meio do
tratamento psicológico no Instituto Psicoterápico Padre Severino. Tudo feito
sob o olhar crítico e diligente da imprensa, através da qual o público tomava
conhecimento das mazelas do Serviço de Assistência ao Menor.
Esse Instituto Psicoterápico
foi objeto das mais nobres esperanças para o tratamento das anormalidades
identificadas nos menores transviados. Foi esta a época, 1956, em que uma
categoria profissional, os psicólogos ou psicologistas, começava a conquistar
um lugar próprio no cenário da assistência ao menor. Foi o tempo da
classificação, categorização, e avaliação.
De acordo com Rizzini (op.
cit.; p.23) “os especialistas revelaram, em avaliações feitas em instituições
do Rio de Janeiro e São Paulo, que a grande massa desses meninos era composta
de ‘subnormais’ de inteligência.”
Esta autora afirma que
“o nível de inteligência dos internos era medido por testes de QI, em estudos
abarcando grandes números de sujeitos, com resultados impressionantes.”
Estranhamente, comparados ao dias atuais a despeito das análises das
capacidades mentais, os menores eram rotulados nos pareceres emitidos em termos
depreciativos como “débeis, idiotas e imbecis.” Outro percentual significativo
desses pareceres taxavam os sujeitos de “subnormais”.
Tais estudos e
diagnósticos pareciam estar mais a serviço de uma posição ideológica que
justificassem a reclusão dos menores nessas instituições; sem nenhuma garantia
de aplicação de procedimento cientifico com neutralidade e isenção.
“Em termos
afetivos e emocionais, os resultados não eram os mais positivos – as
entrevistas e as redações dos internos de uma instituição paulista revelaram
distúrbios da afetividade e distorção da realidade, pois em sua maioria,
percebiam como injustificadas a ‘prisão’ no estabelecimento de recuperação”
(ZAMORA, op.cip.; p.24).
O evoluir da história
dos reformatórios evidencia uma ligação diretamente correlacional entre os
internos taxados como incorrigível, usuários de instituições que se
progressivamente passava de um modelo assistencial para se transformarem no
último lugar aonde a criança jamais poderia estar, numa “surcusal do inferno”,
numa “escola do crime”, cujos relatos, sejam eles internos, ligados às ações
administrativas, sejam externos, produtos do que se propagavam pela imprensa
através do acesso a auditorias por órgãos do próprio Estado, alcançou uma
dimensão negativa incomensurável na sociedade.
Merece destaque a visão
dos profissionais, à época, envolvidos com a questão da infância e da adolescência,
sobretudo os que lidavam com a infração penal, costumavam ter, sempre que
pautados por este assunto um dito comum: este tema é um vício.
“E uma expressão
que de certo modo endosso, e invoco agora como parte da justificativa que move
a produção deste texto. Do dito vício deriva a constatação de que os problemas
centrais diagnosticados em 1992 estão, ainda e infelizmente, presentes, a
despeito do investimento de alguns profissionais, autoridades e organizações na
reversão de um quadro institucional que segue perverso.” (op. cit.; p.35).
A síntese histórica que
se tem é que o velho Serviço de Assistência ao Menor não correspondia à sua
capacidade de atendimento, servindo para fomentar a sensação de caos na
política pública do Estado, já que o paradigma dessas instituições estava
calcada no estabelecimento da ordem. Em vez disso, eram produzidos no interior
dessas instalações, justiceiros, assaltantes, traficantes e toda a série de
malfeitores.
Em 1964 nasce um novo
conceito, a FUNABEM, como novo vislumbre de gerenciamento dessa crise
instaurada, destinada ao restabelecimento da ordem e desintegração do caos há
muito sedimentado na assistência aos menores. Era a época da instauração da
Ditadura Militar e a tônica nacional era tudo em nome da “segurança nacional”,
o sustentáculo ideológico do novo órgão protetor dos menores.
Depois em modelo,
mostrando-se exaurido, transmutou-se para outro novo, a FEBEM, que variava em
outros estados, de FEBEMA e FUNDABEM, e em tantas outras nomenclaturas, todas
elas destinadas é dá um novo layout ao amparo e assistência aos menores, até chegarmos
numa fase em que o Brasil passa por profundas reformas políticas, vem a
Constituinte de 1986-88, resultando na 7ª Constituição da República, um texto
confeccionado sob a égide cidadã, contendo amplos dispositivos que asseguram os
direitos fundamentais da pessoa, por isso mesmo, chamada de Constituição
Cidadã.
A Carta Magna é tão
completa, tão abrangente, capaz de assegurar direitos inalienáveis do ponto de
vista da particularidade de cada cidadão, ao escopo maior, atingindo toda a
coletividade brasileira. Nela se contém o resultado de conquistas
internacionais, principalmente àquelas ligadas aos Direitos Humanos,
consolidadas no pós-guerra de 1945, fruto de tratados nos quais o Brasil é
signatário.
Mesmo assim,
atualmente, temos vários instrumentos legais que buscam aclarear ainda mais o
princípio elementar de respeito a dignidade da pessoa humana. Tem-se o Estatuto
do Idoso, o Estatuto do Desarmamento, A Lei Maria da Penha e enfim o Estatuto
da Criança e do Adolescente, agora com seus mais de vinte anos de vigência.
O Estatuto da Criança e
do Adolescente introduz mudanças tão profundas e amplas nas políticas públicas
dirigidas à infância e juventude brasileiras que não é exagero afirmar que ele
promove uma revolução copernicana neste campo, abolindo o paradigma “da
situação irregular”, regida pelos antigos Códigos de Menores, passando a adotar
a doutrina da proteção integral.
De fato o ECA
representou, na sua inauguração de novo tempo, uma radical modificação rompedora
com a implantação do padrão de relacionamento vertical, centralizado,
manipulador, clientelista e sonegador da iniciativa e criatividade dos
destinatários que, historicamente, sempre marcou no Brasil a relação entre os
pobres e o ramo social do Estado.
Ao revogar o velho
paradigma, representado pelas leis 4.513/64 (Política Nacional do Bem-Estar do
Menor) e a lei 6.697/79 (Código de Menores), o Estatuto cria condições legais
para que se desencadeie uma verdadeira revolução, tanto na formulação das
políticas públicas para a infância e a juventude como na estrutura e
funcionamento dos organismos que atuam na área.
A componente de
modernidade político-social introduzida pelo Estatuto no campo do atendimento,
da promoção e da defesa dos direitos da criança se consubstancia num importante
conjunto de mudanças em conteúdo, método e gestão.
A mudança de enfoque
doutrinário da “situação irregular” para a “proteção integral” implica enormes
mudanças na essência
O novo discurso é que
havia um clamor da sociedade brasileira contra o exacerbado grau de violência
em todas as instâncias de nossas vidas, como cidadãos, como profissionais, como
autoridades. Cientes e conscientes da gravidade deste momento histórico, com o
olhar atento para o que acontece à nossa volta e para o que mais poderá ocorrer
se nos omitirmos, abraçou-se o ideário contido no Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Os pressupostos
Constitucionais refletem o ideal dos art.5º e art. 24, a saber:
“Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
cidadãos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...];
Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente
sobre: XV – proteção à infância e à juventude.”
Quanto ao texto do ECA,
tem-se como artigo basilar o que descreve o abrangente dos direitos da criança
e do adolescente na nova fase histórica:
“A criança e o
adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana,
sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes,
por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de
lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em
condições de liberdade e de dignidade” (Art. 3º, Lei nº 8.069, de 13 de julho
de 1990).
O escopo legal, de
fato, pelo menos textualmente, já desconstrói a antiga visão deformadora e
estigmatizante das instituições de recolhimento desses menores para alçar-los a
um patamar conceitual daquela dignidade humana prevista no texto
constitucional. É inegável o avanço nesse sentido.
Esses novos paradigmas
nos levam a refletir sobre as palavras do teólogo Leonardo Boff: “O que existe
e vive precisa ser cuidado para continuar a existir e a viver: uma planta, um
animal, uma criança, um idoso, nosso planeta... A essência do ser humano reside
no cuidado”. O cuidar não deveria ser uma prerrogativa primária do Estado, mas
sim do núcleo familiar. Art. 221/CF: “A família, a base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Prossegue o
texto:
“É dever da
família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com
absoluta prioridade, o direto à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e
a convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”,
Art. 227/CF-88.
O texto do artigo 227,
da Constituição Federal nos leva a concluir que toda a política pública voltada
para a criança e o adolescente deveria primar pela estruturação da família
nuclear, por melhores condições na área de política habitacional, educacional e
de renda, como já vimos ao longo dessas últimas décadas, mas que ainda
precisa-se avançar.
O lócus familiar pode
ser fonte de corinho, afeto, atenção e desenvolvimento, como pode ser fonte
gerador de ódio e violência de toda sorte que acompanhará a criança pelo resto
da vida, e o Estado, como ficou patente nesse artigo, não têm condicionantes
legais que possam conferir à criança aquilo que só a família pode legar.
O autor
João Batista Nunes
Psicólogo Organizacional, Pós-graduando em
Gestão de Recursos Humanos e Acadêmico de Direito.
REFERENCIAS
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ARIÈS, Phelippe
(Organizado por Paul Veyne). História da
Vida Privada. Parte I. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
_____________. História da Criança e da Família (Dora
Fraksman, trad.). 2ª ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981.
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Secretaria Especial do Interlegis, 2012.
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MARCONI, M.A.; LAKATOS,
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ZAMORA, Maria Helena
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WINNICOTT, D.W. Privação
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