No alto do Jeremias morava Chico Venâncio que era dono e locutor da difusora do bairro. Era o famoso Chico quem dava a notícia (recém trazida num bilhete por um moleque de cara suja e sem chinelo) da chegada de Maria, filha mais velha de Dona Neném e Seu Mané Isidro do Rio de Janeiro.
O estúdio de Chico funcionava na sala da casa, sempre de porta aberta para receber os bilhetes que não paravam de chegar, seja para dedicar músicas, seja para dizer quem estava partindo ou chegando, aniversário, falecimento, documentos perdidos, cachorro perdido e por ai em diante. Era possível ver apinhado no chão, ao lado de uma sanfona velha, uma seleção de discos de vinil dos sucessos mais pedido pelo povo do Jeremias, Araxá e até do Monte Santo.
Tinha disco de Núbia Lafaiete, Nelson Gonçalves, Vicente Celestino, Altemar Dutra, Roberto Carlos, Teixeirinha (bastante utilizado em campanhas para arrecadação de donativos caso morresse alguém cuja família não dispunha de recursos para arcar com o caixão e o enterro. Aliás, uma das faixas que mais se utilizava nessas ocasiões era aquela que dizia assim:
"O maior golpe do mundo que vivi na minha vida / foi quando aos nove anos perdi minha mãe querida/morreu queimada no fogo, morte triste, dolorida (...)"
Imagine um som desse, propagado pelas duas cornetas do alto do bairro, uma melodia bizarra, um acorde tétrico.
Ufa! Fardo pesado para as crianças do bairro! Mas logo vinha as músicas mais alegres e assim a vida ia passado devagar ao som nostálgico da difusora de Chico.
"(...) Desculpe, meu amor, o que eu lhe digo /
Mas meu bem, não é comigo /
Que você deve lamentar /
Você nunca foi um bom marido /
Não cumprindo o prometido /
Que jurou aos pés do altar /
É triste confessar, mas é preciso /
Você não teve juízo /
Em dizer que não me quis /
Perdoa, meu amor, não sou fingida /
Não é só casa e comida /
Que faz a mulher feliz"[1]
Certo dia, para a surpresa de todos, a notícia de falecimento foi, imaginem vocês: a do próprio Chico! O bairro do Jeremias acolheu essa nota com muita consternação, tratava-se de alguém que gozava da simpatia de todos.
A viúva Laura, que também já se fazia ouvir com sua voz melodiosa assumiu o lugar do finado Chico, passando a desempenhar até melhor que este, a função social da difusora. Agora que estava no comando passou a assinar como "Laura de Chico Venâncio!"
Campanhas beneficentes importantes como as que ajudaram na compra de caixões tiveram como beneficiários pós-mortes, o cidadão de alcunha "Rato Molhado" e o outro favorecido foi o popular "Marcolino Pé de Quenga.
Rato Molhado, teve seu nome divulgado na difusora de Laura de Chico Venâncio pela primeira e última vez apenas no ocasião de sua morte. Era um espectro de homem, que não vazia mal a ninguém senão a si próprio.
Talvez tenha passado a ser chamado assim porque mesmo debaixo daquelas chuvas fortes de inverso, sem ninguém nas ruas, lá estava aquela figura bêbada, caindo na lama dos córregos e tentando se levantar rumo a sua casa, um casebre desses que um homem mediano tem que se curvar para entrar.
Marcolino era um mecânico velho que nasceu com uma deformidade nos pés que o forçava a andar com certa dificuldade. Coisa que somente piorava quando ele saia da mercearia de Seu Gilberto caindo aqui e acolá, pelas ruas íngremes do Jeremias, bêbado e dizendo impropérios ao ajuntamento de moleques que saiam correndo e gritando: "Marcolino Pé de Quenga! Marcolino Pé de Quenga!
O tempo foi passando e as duas cornetas da difusora deixaram de reinar sozinhas naquele poste no alto do bairro. É que os crentes abriram uma igreja da Assembléia de Deus, na Rua São Cosme e puseram no alto da Igreja que já que se situava no alto do bairro, duas cornetas de modo que não era mais possível ouvir apenas a difusora de Laura, já que principalmente nos domingos, os crentes não economizavam vozes, crente chorava, cantava, dizia aquelas palavras que só crente diz e Laura ficava fumegando de raiva dessa concorrência de espaço fonográfico!
Autor: João B Nunes
Formado em Psicologia; Graduando em Direito e Pós-Graduando em Gestão de Projetos Sociais e Terceiro Setor.
[1] Canção de Núbia Lafayette (1972)
Compositores: Cesar Augusto Saud Abdala / Carlos Roberto Piazzoli / Durval Lima
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