sexta-feira, 12 de junho de 2020

Memorias do Jeremias



Eu devia ter seis para sete anos e morava na segunda casa emparelhada que vazia esquina na rua São Cosme com a a Santo Agostinho, era a parte alta do bairro. Éramos sete. Papai, trabalhava numa oficina que ficava às margens do Açude Velho como lanterneiro. Ele era bom no que fazia: recuperava lataria de carro amaçado e soldava no maçarico com cilindro alimentado por pedras de carboreto. 

Mamãe trabalhava como merendeira no bairro do Alto Branco num grupo escolar. Depois passou a trabalhar no Grupo Padre Emídio Viana Correia no próprio, a escola ficava na parte baixa. Meu irmão Paulo era o mais velho. Ele sofria do que só muito depois viemos a saber: autista num grau bastante acentuado. Minha irmã Eliane nasceu com Síndrome de Down com retardo mental expressivo. E meus dois irmãos gêmeos Isaías e Isaac, em grau decrescente de idades, formavam a família. 

Não tínhamos televisão, apenas um rádio tão antigo que funcionava com válvulas que acendiam por dentro e o programa policial 'Dramas da Cidade' com o apresentador Clóvis de Melo sempre fazia menção de fatos que envolvia alguém do bairro. A gente sempre ouvia na hora do almoço.

Frequentávamos a igreja da Assembleia de Deus que era em frente da casa onde morávamos. 

A rua tinha uma feição irregular marcada por acúmulos de matos esparsos seguindo a linha de esgotos enegrecidos que corriam a céu aberto. A situação ficava mais agravada quando começava o período das chuvas. 

Com a lama barrenta escorregadia era frequente ver um pobre bêbado que tinha uma deformação nos pés e por isso andava com dificuldades, Marcolino - Pé de Quenga, vivia caindo aqui e acolá, quando saia da mercearia de Seu Gilberto e Dona Marizete (Estes, tinham um casal de filhos, brancos meio agalegados, que se casaram com gente da Igreja Universal e foram ser obreiros), com uma garrafa de cachaça na mão, gritando e dizendo impropérios e amaldiçoando as pessoas que de suas casas ficavam se escondendo e chamando-o pelo seu apelido. 

Outra criatura que dava dó era Salambaia. Ela tinha problemas mentais e era alcoólatra. Magra, cabelo do tipo power black, às vezes com roupas rasgadas e com as partes íntimas a mostra, ela vagava rua acima rua abaixo, deixando as crianças amedrontadas. 

A casa que formava um conjunto com a outra, de propriedade de Seu Meireles, um velho rico que morava numa casa bonita na rua Quintino Bocaiuva, no sentido quartel do Exército/Presídio do Monte Santo, tinha um portão de acesso comum, uma escadaria de três degraus que dava para a rua São Cosme. Portas frente com frente. Um pequeno espaço que separava as duas formando uma área onde tinha plantas ornamentais bem cuidadas por mamãe e pela vizinha, cada qual em seus limites.

Do lado esquerdo havia um terreno com algumas bananeiras, parecendo ser o quintal de um senhor que conhecíamos apenas de vista. Ele tinha um filho que sempre o acompanhava para o trabalho, uma loja de revestimento de bancos de automóveis. Parecia ser um homem respeitável do tipo de casa-para-o-trabalho. O filho desde cedo era envolvido com o movimento satanista do bairro. 

Ele era meio estranho e com tendências ao isolamento. Descobri seu envolvimento mais tarde ao receber uma carta de São Paulo dirigida à ele com um teor doutrinador e umas fitas de evocação ao demônio.

Esse rapaz tinha três irmãs. Cabelos pretos e longos, brancas. Lembro-me que certa vez, estávamos numa espécie de janelinha que dava para o quintal deles, interagindo com elas, e a mais velha pediu para que mostrássemos as genitálias e logo após elas mostrariam a delas. 

Movido pela curiosidade não necessariamente ligada à libido, após a demonstração de nossa parte, a mais velha mostrou rapidamente a dela. Deu risadas pela descoberta pueril e foi-se embora com as outras. 

Tudo que visualizei com um olhar investigador de criança foi por entre a saia jeans com o fleche semiaberto, um amontoado coberto com cabelos pretos escuros, e elas se foram para nunca mais trocar esse tipo de informação visual.

Vivemos nessa casa alugada por dez anos, por dentro tinha uma sala pouco espaçosa, ao lado do quarto do casal, e mais dois quartos, um corredor que dava para a cozinha e no final um banheiro. O quintal era pequeno com uma pequena porta que saia para a parte externa do espaço comum  que dava para o portão.

Quem morava na outra casa que ficava de esquina, emparelhada com a nossa era Seu Antonio e Dona Celina. Era um senhor calmo, de bigode barbeado fino, calvo, estatura de 1,65 mais ou menos. Eles pardos e filhos negros. Um filho mais velho e casado que sempre almoça por lá, era representante comercial do Café Aurora e dirigia uma caminhoneta baú com os produtos Aurora. A moça, de idade intermediária era Corrinha, ou Côla. Uma negra de cabelo encaracolado, sem namorado e com andar um pouco estranho, sisuda, observadora. O rapaz, negro de cabelo liso, também, com essas mesmas feições. 

Era uma família aparentemente normal. Se diziam religiosos, mas nós não identificamos traço algum de que eles fossem praticantes de algum credo. 

Eles gostavam de churrascos, cervejas, não demonstravam ter dificuldades financeiras como meus pais. Tinham televisão preto e branco com uma tela de plástico que acoplava ao aparelho e a imagem ficava parecendo colorida.

Talvez eles não se sentissem muito a vontade com a gente porque eramos crianças barulhentas e costumavam subir no tanque de água acima do banheiro e tomávamos banho como se estive numa piscina. Claro, sem o conhecimento nem consentimento de nossos pais.

Ao cabo dos dez anos, Seu Meireles, dono das duas casas, pôs fim ao aluguel pedindo que meus pais procurassem outra casa para alugar.

Nossos vizinhos permaneceram na mesma casa de esquina. Depois de uns três ou quatro anos, estávamos saindo da mesma igreja defronte as casas, quando vimos uma viatura da polícia cumprindo um mandada de prisão naquela casa. 

Não sabemos o que aconteceu, mas um soldado saiu do interior da casa conduzindo algemado o pacato Seu Antônio. E Dona Celina com os demais membros da família em polvorosa diante daquela situação.

João Batista Nunes
Acadêmico de Direito/Formado em Psicologia.


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