domingo, 21 de dezembro de 2014

O ESPAÇO DE CADA UM


Fila do caixa do supermercado na sexta-feira à noite. Eis que aparece uma criatura avantajada se dirigindo diretamente a pessoa que já estava sendo atendida, dando a impressão de que estavam juntas. Do contrário, o normal era que obedecesse à fila.

De repente a criatura saca de sua bolsa um celular quadradão desses de múltiplas funções e passa a "conversar", ignorando todos à sua volta. Depois se percebe que a pessoa que estava sendo atendida no caixa não tem qualquer ligação com a intrusa. Ela vai ganhando tempo numa conversa interminável até que olha para trás e sinaliza para uma moça (possivelmente a filha) para que esta traga o carrinho de compras abarrotado de produtos e toma o lugar à frente dos demais.

A menina vai se aproximando timidamente, com um olhar meio que envergonhado, demonstrando claramente que por si jamais faria uma coisa dessa. Com a ajuda da figura que persiste em esfregar o celular na orelha, com total desprezo pelo que estão na fila, enfia o carro e vai passando os produtos, tudo isso sem largar o maldito celular.

Diante dessa cena, não há como deixar de refletir no como o mundo seria infinitamente melhor se cada pessoa respeitasse o espaço do outro em todos os sentidos, não apenas na fila de um supermercado, mas em cada detalhe que costumamos nos esquecer em nosso cotidiano.

Nas relações de tralhado, as implicações quase que desapareceriam, o colega do escritório tem seu espaço que lhe é devido e merece ser respeitado; a esposa, o marido, o filho, o colega da escola, todos têm seus espaços.

O espaço da convivialidade se divide em aquilo que representa o meu espaço e o espaço do outro. Ambos os espaços são delimitados explicitamente por normas de convivência, escritas ou convencionadas; como também implicitamente o que exigirá de uma pessoa sensata apenas acessar os recursos da lógica e obviamente, do bom senso, do bom siso para se portar de forma harmoniosa e edificante.

Vale dizer que o espaço social sendo dinâmico e marcado profundamente pelo interacionismo, ganhará mais espaço aquele ou aquela que cultivar a discrição, o respeito ao próximo, sobretudo na leitura inteligente dos limites impostos, demarcadores que indicam até onde podemos ir e quando podemos fazer ou deixar de fazer alguma intervenção pessoal. 

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

PROBLEMA OU SOLUÇÃO?




Toda vez que percebemos uma necessidade de mudança ou de uma ação motivada por um desconforto, nos vemos diante do impulso de achar um caminho para essa mudança.

A mudança implica em desconforto imediato, saída da zona de conforto de indivíduos e organizações. A mudança é o problema, o caminho é a solução. Achar esse caminho, essa solução é, certamente, um processo puro de aprendizado.

Esse processo, quando sistematizado, traz a certeza do aprimoramento dos passos para a solução de possíveis problemas futuros. O significado coloquial da palavra cria conotações problemáticas. Entendemos o termo problema como a identificação de uma oportunidade para o aprendizado e para o aprimoramento. Nesse enfoque, problema deve ser visto como algo positivo. Quem tem muitos problemas está cheio de oportunidades de aprender e de melhorar. Isso é que é otimismo, já que problema é o resultado indesejável de um processo.

O problema é uma ponte para inovar, criar novas oportunidades e expandir novos negócios. Quem cria oportunidades é criador de problemas? Esse é um ponto interessante para a reflexão dos gestores que veem certas oportunidades de aprimoramento como ameaças a seu status quo.

Todos os processos devem realimentar-se de informações, tendo como objetivo sempre seu próprio aprimoramento. Cada processo possui uma fase de controle, na qual é verificada a conformidade entre o planejado e o executado. Nessa fase, a variabilidade de um processo é mantida dentro de limites predeterminados e diz-se que o processo está sob controle.

Em muitas obras voltadas para a qualidade, são feitas referências às sete ferramentas da qualidade e também às sete ferramentas gerenciais para a qualidade – sete novas. Esses dois conjuntos de técnicas são muito importantes para a sistematização e para o aprimoramento dos processos de aprendizado.

Esses dois conjuntos de técnicas, com todas as suas variações têm sido responsáveis pelo real aumento da capacidade das pessoas em transformar seus achismos em fatos e dados, suas incertezas em confiança provendo a base para a tomada de decisão adequada em cada processo.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

FILHOS DESTE SOLO



Pobre Lindoval. Pode-se dizer um homem desaventurado. Um tipo de mistura de negro com índio. Não sabe ler nem escrever. Para ele pouco interessa se o presidente Collor sofrerá um impeachment ou se o sumiço do constituinte Ulysses Guimarães foi ou não acidente fortuito.

Na verdade, o que interessava a Lindoval era vender os papelotes de maconha, tirar o seu que é sagrado e consumir o tempo sentado num elevado que existe numa rua de esquina com o alto do  bairro periférico onde nasceu e sempre viveu. 

A mãe era lavadeira de roupa conceituada em casa de patrões ricos. Frenquentava mais a irmã o The Salvation Army, instituição religiosa e filantrópica, criada em 1865 pelo reverendo Willian Booth em East And, Londres, Inglaterra. A pobreza sempre achou guarida nessa denominação. Periodicamente as fábricas de laticínios da Suíssa enviavam latas de cinco quilos de leite em pó e queijo da melhor qualidade em barras de 500 gramas para ser distribuída pelos membros mais pobres e inscritos que viviam na extrema pobreza.

Lindoval gozava dessa "salvação", pois a mãe sempre dava partes generosas de leite e queijo para alegria dos netos que em pouco tempo passaram de desnutridos esmilinguidos para cabeçudos e barrigudos. Nesse sentido, a vida era um sossego. A mulher ficava fielmente as tardes se inteirando de todos os assuntos corriqueiros da vizinhança (quem traiu quem, quem foi preso, quem morreu, quem foi para São Paulo etc.) mais um grupilho de mulheres igualmente desocupadas com seus filhos ora amamentando ora batendo neles para pararem de berrar.

Quando uma descuidava do marido, já era! A outra, geralmente a amiga mais próxima virava tema da tarde posterior. Mas Lindoval, sempre estava ritualisticamente no mesmo lugar, atento e operante, junto a uns amigos seus, uns caras com feições sombrias e desconfiadas.

A Polícia que não era nada besta, aqui e acolá surpreendia a turma (sob a alegação de atitudes suspeitas). A viatura apontava lá em baixo, parando de vagarinho... Mas os soldados já estavam com arma um punho enquadrando-os contra a parede. Não encontrando nada que valesse uma "carona" para a Central, para não perder o esforço tático, dava pelo menos uns tapas, gritando ao pé d'ouvido: "Vão trabalhar vagabundos! Ladrões safados, tamo ligado em vocês!"

Era sabido que vez por outra um ladrão caia nas mãos do inspetor do bairro. Um agente da lei que descia o cacete nos espinhaços do infeliz, deixando-o dias na salmora para se recuperar e nunca mais roubar qualquer morador da comunidade. Ele tinha como instrumento de trabalho um revolver calibre 38, mais o preferido era o velho e conhecido cipó de boi.

Para manter a ordem social, ao arruaceiro, descuidista, bêbado, tarado, ladrão, rapariga, bastava mencionar o ditoso "cipó de boi" para todos os astutos intentos perderem a força motivacional. Tinha ladrão que levava uma televisão daquelas grandes e pesadas de uma casa pela madrugada. Quando o relógio batia 10 horas, ele mesmo vinha devolver e se desculpar com o legítimo dono.

Continuando, Lindoval, aos domingos tinha agenda certa e determinada: o campo de pelada do bairro, bastante concorrido. Tinha os moleques vendedores de Dim-dim, pastel, um fiteiro volante de caroça de mão, onde se vendia refresco e geladinho (gelo ralado na hora com corantes diversos) e, uma cachaça braba daquelas que o cabra toma de um gole só, sem fazer careta. E, umas "doninhas do ramo" que, não sei porque vendiam mais que os outros.

A turma que frequentava o jogo era eclética. Tinha gente de bem, pai de família, trabalhador, honesto. Mas não se pode esconder o fato de que a turma da pesada era fiel. As brigas eram constantes nas decisões "mal interpretadas pelo juiz". Nessa hora, a bala cobria e a poeira levantava sem se saber exatamente quem atirou. Nos dias mais fracos, a coisa se resolvia na faca mesmo. Bastava um jogador chamar o outro do tradicional "Filho de..." que o risca faca cantava no bucho de alguém.

Num desses jogos, debaixo de um sol quente de rachar cuca, decididamente era o dia em que Lindoval deveria estar em todo o lugar, menos no campo. 

Não se sabe se foi o escorão ou o bafejar de um palavrão, o oponente abandonou o jogo de imediato em direção à sua mochila de pano com a estampa do Flamengo e arrancou-se de lá com a fúria de um touro descontrolado daqueles que vez por outra atravessa com os chifres o corpo de um besta nas ruelas da Espanha! 

À sua mão ele trazia reluzente pela força do sol uma faca peixeira com endereço certo: o bucho de Lindoval. Nessa hora todos ficam parados vendo o desenrolar do fato. Quem vai se meter num assunto desses? O cara com os olhos vermelhos como o Príncipe das Trevas, rosnando palavras de ira incontida, voou direto na "boca do estômago" do desaventurado Lindoval! 

Foi uma rasgada tão metódica, retilínea, um trabalho preciso de deixar esses estudantezinhos de medicina com nota baixa nesse item. A coisa foi feia. Feia mesmo. As tripas saltaram do bucho!

Lá vem os companheiros de Lindoval descendo a ladeira, trazendo-o numa carroça de mão às pressas para parar algum carro ou chamar um taxi para tentar salvar sua vida.

Lindoval estava firme. Queria viver a todo custo! Ele mesmo colocou as tripas de volta ao intestino e fazia pressão com as mãos para conter a abertura. Depois de um mês no hospital, lá vem o homem com uma tatuagem pegando toda a extensão do bucho, num formato de dragão Chinês.

Ele utilizou o tempo de repouso para se interiorizar. Foi a passos contidos para a Igreja Assembleia de Deus, cumprimentava os irmãos com a paz do Senhor, cantava os hinos da harpa cristã e por isso sua mãe chorava de alegria. 

Quando se recuperou de todo, deixou de jogar por motivos óbvios, nunca mais foi à igreja e a maconhazinha de lei voltou a fazer parte de seu vida. 

Mas de tanto a pessoa ficar ociosa, e as conversas perderem a novidade, Lindoval revolveu enfiar-se com outra mulher, a vizinha. Umazinha de 17 anos, mãe de três filhos que estava meio que intrigada com o marido, um branquelo lavador de carro.

Nas conversas trocadas entre as próprias mulheres, o caso amoroso de Lindoval  entrou na pauta, acidentalmente, já que a principal interessada no assunto estava presente. Ela simplesmente retirou-se sem dar uma palavra para as pareceiras. Riram-se dela, é claro. Aquela gente que também tinham histórias semelhantes, mas sempre se esquecem e gozam das novas vítimas. 

A noite caiu. O bairro foi aos poucos adormecendo. Lindoval ainda saboreando a volúpia daquela outra mulher, também foi-se entregando a um sono gostoso e tranquilo. De madrugada sentiu umas mãos despindo-o. Era a criatura de sempre, sua mulher. Resolveu se manter como que dormindo, para ver até que ponto aquela ação iria e que reações produziriam.

De repente aquelas mãos pararam. E ele na expectativa... A mulher tomada de grande cólera, despeja sobre o corpo nu de Lindoval uma panela de água fervente. Foi uma dor que arrancou um berro dos mais altos, jamais vistos no bairro. Mais uma vez, lá vai Lindoval para o hospital com parte do corpo seriamente comprometida pelo dano.

Retornando para sua casa, já quase curado de todo, não sente mais nenhum desejo de olhar para a outra, nem dirigir um "bom dia ou boa tarde", e se acontecer mais uma tragédia em sua vida será capaz de abandonar a maconha e virar crente, em definitivo. 

João Batista Nunes
Psicólogo Organizacional,
Pós-graduando em Gestão de Recursos Humanos
e acadêmico de Direito.