domingo, 24 de fevereiro de 2013

O cego Zé Maurício


Um resgate sociohistorico do cotidiano do Bairro do Jeremias 

O velho Zé Maurício era cego de nascença. Morava desde a década de 1970 numa pequena casa com frente recuada na Rua São Benedito no bairro do Jeremias, na cidade de Campina Grande, estado da Paraíba. Casado com uma mulher também cega, eles tiveram filhos e sobreviviam de ajudas de populares principalmente dos crentes da Assembleia de Deus, igreja na qual abraçou a fé.

Quem entrasse naquela casa se deparava com um cenário rustico de feições toscas. A mobília da sala se resumia num resto do que um dia havia sido uma poltrona com o estofado desgastado ao extremo. O piso era de chão batido, uma vassoura no canto da sala, feita com mato rasteiro ainda verde que crescia no quintal. Um móvel velho demarcava a fronteira do quarto separado por uma cortina pano de chita e a cozinha donde emergia pela cuminheira uma fumaça forte vinda da cozinha, onde pedaços de paus alimentavam o fogo para o café de Zé.

Com a morte da esposa, Zé Maurício sofre a terrível dor da separação. Nunca mais iria ter a seu lado, sua companheira. Rude e forte ele prossegue sua jornada. Nos sábados, um moleque, neto seu, o conduzia a passos largos para o mercado central. Ele conduzia às costas um saco de pano. E na volta, o peso dos donativos se acomodava em sua cabeça. 

Aos domingos, a peregrinação era a mesma. Só que mais cedo. Zé Maurício não costumava se atrasar para o compromisso da Escola Dominical da igreja da Rua São Cosme. 

Eloquente, podia discorrer horas a fio sobre sua fé, trazendo sempre uma bíblia com capa de couro desgastada pelo tempo.

Os ônibus sucateados da Viação Nossa Senhora do Perpétuo Socorro que passavam naquelas ruas esburacadas e empoeiradas do Jeremias (e mais tarde, a empresa Cabral), nunca tiveram o registro desse ilustre cidadão tomando acento, rumando para algum lugar. Ele, curiosamente, preferia percorrer longos trajetos a pé. 

Zé Maurício sofredor, fiel defensor de sua fé, trajando seu terno domingueiro, já no fim de sua vida, deixou uma lição para um esnobe zombador que abastecia seu veículo num posto da Volta de Zé Leal: "- Ei cego! Porquê anda com a bíblia se não a lê?! A resposta veio sem rodeios: " - Está escrito: "Disse Jesus: Eu vim a este mundo para juízo, a fim de que os que não vêem vejam, e os que vêem sejam cegos!"  (João 9:39).

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A BODEGA DE SEU GARRINCHA
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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

DÉCADA DE 60: "A CULTURA É DO POVO!"


A explosão de criatividade invadiu as artes, sobretudo a música, o teatro, o cinema, a
produção editorial nacionais. Uma estética radical de raízes tupiniquins garantia
momentos de glória ao cinema nacional. Nélson Pereira dos Santos filmara o clássico
Vidas Secas, em 1963, e Anselmo Duarte conquistara Cannes com o Pagador de
Promessas, de 1962. O quase menino Glauber Rocha dirigira Terra em Transe, em 1967,
e concluiria, em 1969, O dragão da maldade contra o santo guerreiro. Filmaria a grande
mobilização carioca de 1968 para projeto cinematográfico jamais concretizado. Bertolt
Brecht era uma constante nos teatros nacionais com Os fuzis da senhora Carrar, Galileu
Galilei, A ópera dos três vinténs, Mãe coragem e seus filhos. A dramaturgia nacional
plantava raízes próprias com Liberdade, liberdade e Arena conta Zumbi, de 1965;
Arena conta Tiradentes, de 1967; e com encenações explosivas como Roda-viva, de
1968, objeto de ataques de grupos paramilitares direitistas.

Em um país de poucos leitores, com a televisão ainda engatinhando, o combate cultural enfuriava quando se tratava da música popular. Apenas parcialmente inconscientes do papel que cumpriam, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Vanderleia e a turma da Jovem Guarda pregavam a despolitização e só pediam “que você me aqueça nesse inverno e que tudo mais vá para o inferno”. A esquerda dominava totalmente o campo, com uma seleção que só aceitava craques: Caetano, Chico, Elis Regina, Jair Rodrigues, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Vinícius de Morais etc. Quando dos festivais da canção, a disputa politizada transformava-se em uma quase batalha campal.

Através da música, debatiam-se os projetos para o futuro do país. Em uma época sem cerimônias, iconoclasta, o público levantava-se contra os monstros sagrados que construía caso ousassem sair da linha, ou do que se pensava que fosse a linha. Em 28 de março de 1968, três dias antes do quarto aniversário do golpe, as polícias militares do Exército e da Aeronáutica invadem o restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro, e disparam à queima-roupa contra os estudantes, matando Édison Luís de Lima Souto, de 18 anos. 

No dia seguinte, sexta-feira, a antiga capital da República parou para que sessenta mil populares acompanhassem a despedida ao secundarista. A resposta foi violenta. Por diversos dias, a cidade tornou-se campo de acirrada batalha. De um lado, estudantes e populares. Do outro, polícia e exército. Universitários, secundaristas e populares são mortos. Ao deslocarem-se pelas ruas do Centro, os soldados protegem-se debaixo das marquises dos objetos atirados desde os edifícios. Um policial militar, a cavalo, morre ao receber na cabeça um pesado balde, ainda carregando cimento fresco, lançado desde um edifício em construção.


A agitação estudantil alastra-se pelo Brasil, com manifestações nas principais capitais. Na quarta-feira, 26 de junho, o movimento alcança seu ápice. No Rio de Janeiro, cem mil manifestantes concentram-se na Cinelândia e desfilam pelo Centro, em uma demonstração permitida pelo governo. Cinquenta mil pessoas protestam nas ruas de Recife. As grandes manifestações alcançam efeito inesperado. Dias mais tarde, uma comissão da “Passeata dos Cem Mil”, do Rio de Janeiro, é recebida em Brasília pelo ditador Costa e Silva. Entre os membros da delegação, encontra-se um representante da UNE, entidade colocada na ilegalidade imediatamente após o golpe. Entretanto, o encontro não tem consequências.

A mobilização operária levara a oposição sindical a planejar um amplo movimento grevista para o fim do ano, quando da data-base de importantes categorias. A explosão das manifestações de junho aceleraria a greve. Em 16 de julho, José Ibrahim, presidente do sindicato dos metalúrgicos de Osasco, de vinte anos, ligado à organização militarista VPR, põe-se à frente de uma paralisação da COBRASMA, com ocupação da empresa e aprisionamento dos funcionários graduados, à qual aderem dez mil trabalhadores de outras indústrias. O movimento exige reajuste de 35%, reposição salarial cada três meses e outras reivindicações. A ditadura militar responde violentamente. 

Centenas de trabalhadores são presos e despedidos. A COBRASMA é invadida. José Ibrahim mergulho na clandestinidade. Zequinha, dirigente operário da COBRASMA, é preso e torturado. 

Após cinco dias, a greve quebrava-se. Uma segunda paralisação, em Contagem (MG), em outubro, é reprimida com facilidade. A greve geral do fim do ano jamais seria tentada.


No país, decresce a mobilização. Em 12 de outubro, o movimento estudantil, espinha dorsal da oposição, recebe forte golpe. Subestimando a repressão, a direção da UNE reúne, para seu 30º Congresso em um sítio em Ibiúna, cidadezinha do interior de São Paulo, milhares de delegados de todo o país. A prisão dos participantes permite a detenção das direções e o mapeamento das lideranças estudantis do norte ao sul da nação. No mesmo dia em que caía o Congresso de Ibiúna, era varado pelas balas de um comando militar da ALN/VPR, diante de sua residência em São Paulo, o capitão estadunidense Charles Chandler, funcionário da CIA, “estudando” Sociologia no Brasil.


Os dois acontecimentos ilustravam a orientação que viveria a resistência nos anos seguintes. Ações armadas de grupos de corajosos jovens militantes, isolados socialmente, pretendendo substituir o movimento de massas em refluxo. Em 2 de outubro, na capital mexicana, na Praça das Três Culturas, de duzentos a trezentos estudantes e populares foram massacrados pelo exército e policiais durante concentração, dez dias antes do início dos Jogos Olímpicos, que se realizaram sem quaisquer pruridos morais. 

Sobretudo de 1969 a 1973, organizações de esquerda militaristas, inspiradas no foquismo guevarista, lançariam ações espetaculares - assaltos a bancos, sequestros de embaixadores e de aviões, execuções de torturadores, guerrilhas rurais etc. - sem que os trabalhadores urbanos e rurais aderissem à proposta de luta armada imediata, milhões de anos-luz longe de suas consciências, necessidades e capacidade de organização na época. Isoladas, as organizações seriam dizimadas, uma após a outra, pela repressão, que se estenderia igualmente aos militantes voltados para a organização dos trabalhadores e classes populares. Por esses anos, automóveis da nova classe média ascendente invadiam as ruas, portando o autocolante “Brasil: ame-o ou deixe-o”, distribuído pela repressão, simples tradução da consigna direitista estadunidense America love it or leave it.